Nós não sabemos o que comer: por que a ciência não consegue resolver a nossa questão mais básica de sobrevivência?
Artigo traduzido por Guilherme B. Ceolin. O original está aqui
por Thomas Goetz
Foto por Conrad Baker
Crescendo em Minnesota na década de 1980, a cozinha da minha família era um exemplo de consumo saudável, de bom senso, do meio-oeste americano. Filhos de um pai médico e uma mãe enfermeira, meus irmãos e eu fomos alimentados com sensatas porções de frango assado e batatas cozidas com pouca gordura, baixo teor de sal, paneladas de arroz selvagem, vegetais muito bem cozidos e, lamentavelmente, totalmente destituídos de fast foods, salgadinhos e refrigerantes (chamávamos de "pop"). Nenhuma manteiga em nossa mesa; nós comíamos margarina. Margarina Fleischmann, para ser preciso. Todas as manhãs, meu pai fazia uma grande pilha de torradas amontoadas e recheadas com margarina. E quando chegava da escola, eu lambuzava uma pilha de bolachas e comia como lanche. Eu acho que nós comíamos aproximadamente um tablete de margarina em uma semana.
Esse tablete fazia parte de uma enorme quantidade de margarina consumida nos EUA. Em 1983, os americanos comeram 1.04 bilhões de kg - o dobro que de manteiga. Todos nos diziam que era melhor do que manteiga - sem gorduras saturadas, sem colesterol. Muito mais saudável.
Tudo estava errado.
A margarina diária pode não ter tido gorduras saturadas, mas estava repleta de gorduras trans, um vilão ainda mais perigoso que junta um duplo golpe: aumenta o colesterol LDL (o material ruim) e reduz o colesterol HDL (a coisa boa). No início dos anos 90, uma onda de estudos começou a sugerir o perigo: as gorduras trans foram diretamente correlacionadas com taxas mais altas de doenças cardíacas e a muitos tipos de câncer. Uma reação negativa ocorreu, e em 2006, os EUA exigiram a rotulagem das gorduras trans. Em 2014, a FDA (Food and Drug Administration) as proibiu por completo.
Hoje, não podemos acreditar em quão estúpidos todos nós éramos (exceto se você estivesse em uma dessas famílias conservadoras que se mantiveram na manteiga o tempo todo).
A ciência sobre as gorduras trans marcou uma mudança na forma como os americanos pensam sobre saúde e nutrição e nos levou a uma era de contradições regulares e, muitas vezes, de confusão. Antes das gorduras trans, havia uma sabedoria convencional em torno da nutrição e da doença. Fora alguns estudos observacionais, como o de Framingham, o entendimento era que dietas ricas em sal, gorduras saturadas e colesterol estavam associadas a maiores taxas de pressão alta e doenças cardíacas. A recomendação simples foi evitar alimentos ricos nestas substâncias. Uma era de refeições “certinhas” e quatro grupos de alimentos o que os americanos tentaram seguir.
Nos últimos 20 anos, porém, muito dessa sabedoria convencional foi atirada pela janela. Estudo após estudo, descobriu-se que as coisas que pensávamos serem ruins para nós de repente se tornaram úteis, e alimentos aparentemente benignos - açúcar, carboidratos, grãos - viraram os novos demônios no armário. A confusão deu origem a especialistas como Robert Lustig e Gary Taubes e – o príncipe de todos estes – Michael Pollan, os quais prometeram nos guiar através do caos com sua sabedoria. Mas a ciência continua a entrar em contradições. Tanto quanto você possa estar convencido de que encontrou a verdade, saiba que algumas partes dessa verdade estão destinadas a estarem erradas, assim como estávamos todos errados sobre margarina, manteiga e ovos, gordura e sal.
A questão mais simples possível: o que, afinal, devemos comer?
Ainda que simples, poucas perguntas têm sido tão difíceis para a ciência responder com alguma certeza.
Vitaminas, minerais, suplementos, pouco glúten, pouco carboidrato, baixo colesterol - indústrias inteiras foram construídas sobre a inclusão ou exclusão de certas substâncias em nossas dietas. Evitar a doença é o objetivo geral aqui. Geralmente, doença cardíaca, seguido por câncer um segundo lugar. Contudo, a ciência revisada por pares que conecta essas várias causas com seus vários efeitos é surpreendentemente escassa.
As dietas têm sido amplamente ligadas à saúde por séculos, desde que Hipócrates apocrifamente disse: "Deixe que a comida seja seu remédio e os remédios sejam a sua comida". Entretanto, apenas no século XX, as associações entre alimentos e doenças surgiram. Nos últimos anos, a ciência associou diversas escolhas nutricionais à artrite, a asma, a doença de Alzheimer - e isso apenas as doenças com a letra A. Esses achados são, em grande parte, correlações estatísticas, correlações decorrentes de estudos observacionais.
A ligação entre a doença de Alzheimer e os ácidos Ômega-3, por exemplo, é em grande parte resultado de pesquisas em populações com dietas ricas em peixes. Os ensaios aleatórios randomizados, considerados o padrão-ouro da pesquisa, foram menos contundentes. Mas, na imaginação popular, a associação foi absorvida como algo muito mais próximo de causa e efeito definitivos e completos, com sua própria dieta apelativa - a dieta MIND, sigla para a Mediterranean-DASH Intervention for Neurodegenerative Delay Diet (literalmente, “Intervenção dietética DASH mediterrânea para atrasar a neurodegeneração”. "DASH" sendo seu próprio acrônimo para "Abordagens Dietéticas para Parar a Hipertensão"). Claro que também existe um livro, oferecendo a dualidade "coma isso/não aquilo", que atrai nossos cérebros primitivos, mas esta abordagem é apenas modestamente apoiada pela ciência. Nós nos identificamos com essas simplificações, porque elas nos encorajam a acreditar que a ciência resolveu o problema, que o nosso suprimento de alimentos industrializados escondeu a resposta verdadeira de nós, que existe uma dieta pura - enterrada na história - que pode realmente afastar a doença e nos manter para sempre saudáveis. Exceto que não existe. Se queremos seguir uma dieta pura, "original", semelhante a nossa origem animal inicial, esta seria ainda mais extrema do que a dieta paleo: todos os vegetais crus, consumo ocasional de carne e pouco ou nenhum processamento dos alimentos - sem moagem, sem descascar, sem triturar, e o mais perturbador de tudo, sem cozinhar. Tudo o que teríamos seriam nossos dentes. Nesta forma bruta, trabalharíamos mais para extrair nutrientes de nossos alimentos - mastigando e mastigando e mastigando - mas comeríamos muito mais fibra e muito menos açúcar ou amido. Claro que tal dieta provavelmente parece absurda, impossivelmente primitiva. Sem comida cozida, perderíamos um dos grandes prazeres da vida. Na verdade, poucas coisas nos trazem mais prazer do que comida. Ela acende nosso córtex como nada mais que consumimos diariamente. Por isso, poucos de nós - menos de dois por cento dos americanos - escolhem se tornar vegetarianos, apesar da ampla evidência de que uma dieta totalmente baseada em plantas é a nossa mais efetiva ferramenta não-farmacológica para afastar diabetes, doenças cardíacas, acidentes vasculares cerebrais e tantas outras doenças. Esta verdade está lá fora, com ampla ciência para apoiá-la. Mas ser um vegetariano completo exigiria um sacrifício muito além da nossa capacidade. O prazer que recebemos da comida, é claro, é precisamente o motivo pelo qual consumimos tanta coisa ruim. Pelo fato de serem naturalmente escassos, desenvolvemos nossa fissura por açúcar, gordura e sal porque nossos corpos precisavam deles. Hoje, construímos uma civilização requintadamente projetada para nos servir as coisas ruins em quantidades infinitas (eu estou olhando para você, Ronald, Wendy, Coronel e Taco John). Até podemos saber que tudo isto é ruim para nós, mas não podemos nos conter. Ou justificamos que mais uma colher ou fatia não será tão ruim. E não é apenas nossa biologia e a indústria de fast food que estão nos mostrando contradições. A comida está no centro dos dois pilares fundamentais da existência humana: religião e política. Dificilmente há uma fé importante que não estipule o que as pessoas devem comer de uma forma ou de outra, seja evitando certas carnes ou apenas comendo peixe nas sextas-feiras. Algumas religiões até nos pedem para acreditar que certos alimentos são uma da muitas formas da carne de Deus. Não é de admirar que fiquemos confusos.
Por sua vez, a política tornou os alimentos tão controversos quanto as mudanças climáticas, muitas vezes estando intimamente relacionados com ela. Pelo menos seis agências diferentes no governo dos EUA estão envolvidas em alimentos e nutrição - CDC, NIH, FDA, USDA, EPA, FTC - e cada uma dessas agências está sujeita a vários vícios e influências. Influências notáveis nas constantes mudanças promovidas pela USDA nas diretrizes dietéticas dos grupos nutricionais da pirâmide alimentar.
O que comer, de acordo com o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, cerca de 2005
A política em torno da alimentação nos Estados Unidos tem fomentado várias teorias de conspiração - conspirações que, infelizmente, muitas vezes se tornam verdadeiras, por exemplo, de como os subsídios maciços aos fazendeiros de milho de Iowa criou um excesso de xarope de milho de alta frutose, alimentando o lobby corporativo e corrupto que influencia as pirâmides alimentares. Há muito dinheiro envolvido para esperar clareza e orientação do governo.
Racionalmente eliminar o dogma e a política com evidências empíricas. É para isto que a ciência serve.
Provavelmente, parece ser o tipo de problema que a ciência poderia resolver. Afinal, milhões de testes e experiências estão acontecendo todos os dias. Por que não podemos medir o que as pessoas fazem diariamente e gerir os números? Porque acontece que a pesquisa com humanos é excepcionalmente difícil.
Em experimentos com outros organismos - ratos, digamos - a maioria das variáveis pode ser controlada e calibrada, a maioria de todas as influências são monitoradas e medidas. Não é assim no Homo sapiens, particularmente falando de nutrição. Uma experiência verdadeiramente controlada - onde as pessoas podem ser isoladas e alimentadas com dietas rigorosas durante anos - é impossível. E ao rastrear seres humanos "na natureza", tanto quanto os cientistas da nutrição podem tentar isolar uma variável, lanches furtivos e calorias não contabilizadas podem confundir os resultados. Em vez de ensaios clínicos randomizados, então, a ciência da nutrição geralmente depende de estudos observacionais ou retrospectivos, onde você começa com uma doença como diabetes e tenta analisar de retrospectivamente para entender as causas e os pontos em comum.
Em última análise, os resultados desses estudos podem ser sugestivos, mas quase nunca definitivos. A falta de respostas definitivas é especialmente frustrante porque a maioria de nós sabe que estamos fazendo isso errado. Estamos comendo demais ou bebendo demais e vemos o problema, todos os dias, no espelho. Mas a solução - apenas “como mudar a nossa dieta para melhor?” - continua a ser evasiva. A resposta, talvez, possa estar olhando para nós nesses espelhos. Grande parte da nossa saúde é, em última instância, uma tecelagem complexa de nossas dietas com nossa genética. É por isso que algumas pessoas correm maratonas e nunca perdem peso. É por isso que os outros podem comer horrivelmente - como o cara que come pizza todos os dias - e ainda fica relativamente saudável. Ainda mais confuso que isso pode ser o fato de que também soframos influência de um fator microbiano, tal como sugerem os achados recentes de que algumas doenças cardíacas - há muito consideradas não infecciosas e em grande parte comportamentais - podem ter um componente bacteriano significativo.
Então, voltemos à sabedoria convencional: evitem alimentos processados. Comam mais vegetais e menos carne. E o melhor, pare de comer antes de não conseguir dar outra mordida.
[N. T.: traduzi fielmente o que o autor escreveu. Não necessariamente concordo com tudo o que está escrito]
Guilherme Ceolin é mais um animal bípede e tagarela tentando encontrar seu lugar no mundo, que calhou de ser biólogo e doutor em Botânica. Paga suas contas atuando como professor universitário federal na UFSM-FW, onde desenvolve projetos com temas ligados ao mundo das plantas, sejam elas bonitas ou feias, saborosas ou não. Se diverte, relaxa e desestressa lendo e escrevendo sobre divulgação científica (Deviante, onde também participa do Scicast Podcast) e literatura (Wattpad), brincando com os filhos, pesquisando ingredientes, cozinhando e comendo.
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