O que causa doença cardíaca? Parte 7

Artigo traduzido por Larissa Hashimoto. O original está aqui.

por Malcolm Kendrick

Há mais de 30 anos tenho estudado doenças cardíacas, ou Doença Cardiovascular (DCV). Eu não acho que tenha um Transtorno Obsessivo Compulsivo... mas pode ser que sim. Devo admitir que às vezes parece não haver respostas, ou pelo menos nenhuma resposta que não tenha uma contradição do tamanho do Monte Everest.

Em certo ponto eu simplesmente decidi que DCV era apenas uma manifestação do envelhecimento. Ela acometia todo mundo, em diferentes níveis. Não havia uma causa ou causas. DCV era apenas algo do qual a humanidade sofria e eu deveria seguir em frente. 

Porém, lá no fundo, eu sabia que isso não podia ser verdade. Havia populações com níveis de DCV que se aproximavam de zero, e outras em que os níveis eram extremamente altos. Só para dar um exemplo. Rússia versus Japão. Em 2006 homens Russos abaixo de 65 anos sofriam oito vezes mais DAC (Doença Arterial Coronária) do que homens japoneses. Eu não acho que essa proporção deva ter mudado muito.

Eu sabia que homens japoneses não tinham nenhuma proteção genética. Quando emigravam para outros países, seus níveis de DAC aumentavam rapidamente pareando com o da população que os cercava. Nem sempre, mas quase sempre. Então era óbvio que algo, ou algumas coisas, estavam causando diferenças substanciais nesses níveis. Não era apenas destino ou genética, não era apenas “como as coisas são”. [Por sinal, o nível de colesterol médio dos homens russos em 2006 era de 91mg/dl, e dos japoneses era incrivelmente... 91mg/dl].

Muito, muito tempo atrás eu conclui que colesterol, ou colesterol LDL não tinha muita relação com DCV. Bem, se duas populações têm exatamente os mesmos níveis de colesterol e uma diferença de dezoito vezes em seus níveis de DCV, o colesterol poderia representar apenas 1/18 do risco total. Este cálculo supõe que todos os casos de DCV no Japão são causados pelo colesterol, com influência de nenhum outro fator. Eu não acho que preciso perder tempo contando o que eu acho dessa ideia.

Por muitos anos eu segui a hipótese alternativa de que DCV era causado principalmente por stress. Havia muitas evidências para apoiar esta ideia, e é claro que ainda há. Eu ainda acredito que stress (um conceito que ainda necessita de um pouco de explicação) é a principal causa de DCV. Porém, ainda havia muitos casos de morte por doença cardíaca e derrames onde o stress não tinha nada (ou nada que eu pudesse ver) a ver com isso. 

Por exemplo, como eu mencionei anteriormente neste blog, o Lúpus Eritematoso Sistêmico (LES), onde o nível de risco relativo de DCV em mulheres jovens é 5.000% mais alto do que no resto da população. Este sim é um aumento de risco significante. De fato, é este tipo de aumento que mostra que você está vendo um caso “verdadeiro” de DCV. Não uma associação fraca e vacilante.

Eu também estava interessado na Doença de Kawasaki. Está é uma vasculite (inflamação dos vasos sanguíneos) que afeta crianças pequenas, que podem sofrer ataques cardíacos aos quatro, cinco anos. Não é exatamente o mesmo mecanismo que causa ataques cardíacos em adultos, mas muito próximo. Novamente, isso é muito significativo. Uma condição que pode matar crianças de quatro anos de DCV não é uma simples anomalia que possa ser ignorada. Eu sabia que estava olhando para outro caso verdadeiro. 

Mais tarde, minha atenção se voltou ao Avastin. Uma droga para tratar câncer que quase foi tirada do mercado porque acelerava rapidamente o desenvolvimento de placas ateroscleróticas e a morte por DCV. Nenhum outro fator de risco precisava estar presente.

Mas como ligar LES, Doença de Kawasaki e Avastin, stress e outros fatores de risco como fumo e diabetes? Quando eu discutia sobre isso com “experts” em cardiologia, eles acabavam dizendo que DCV era multifatorial. Porém, isto sempre me pareceu que estavam jogando a toalha. “Sim, é claro que é multifatorial.” Eu respondia. “Mas como estes múltiplos fatores interagem? Eles criam diferentes doenças, ou a mesma doença... através de processos completamente diferentes?”

No fim das contas, se você quer compreender DCV você precisa conseguir unir todas as verdadeiras causas de DCV em um processo único e coerente que abarque todos os fatos. Se você não consegue fazer isso, você na verdade está apenas tropeçando no escuro. Simplesmente murmurar “multifatorial” toda vez que alguém te fizer uma pergunta que você não consegue responder não acrescenta nada ao conhecimento.

Ao longo dos anos, eu sempre retornava ao estudo escocês Coração Saudável (Health Heart), por um motivo muito importante. Que era que, neste estudo, o fibrinogênio surgiu como o principal fator de risco para DCV. Um fato que parecia ter surgido do nada. Para nunca ser mencionado novamente. Neste mesmo estudo descobriram que colesterol não era um fator de risco para doenças do coração. Outro fato que nunca mais foi mencionado novamente.

O “fator fibrinogênio” era apenas uma anomalia, uma observação única que nunca mais seria replicada? Eu precisava descobrir. Então eu tirei minha atenção do stress para focar em fatores de coagulação do sangue. Quando fiz isso, encontrei a mesma coisa, repetidamente. Fatores que aumentam a coagulação do sangue estavam sempre associados com um maior risco de DCV. Fatores que reduziam a coagulação do sangue reduziam o risco de DCV.

Apenas para dar um exemplo específico. Colesterol HDL, o chamado “colesterol bom”. O pensamento convencional é que o HDL suga o colesterol das placas ateroscleróticas e o transporta de volta para o fígado pelo sistema de “transporte reverso de colesterol”. Um conceito que sempre me pareceu ser uma explicação furada. Contudo...

“As propriedades antitrombóticas do HDL também estão relacionadas à supressão da cascata de coagulação e estimulação da fibrinólise de coágulos. Além disso, o HDL estimula a produção endotelial de óxido nítrico e prostaciclina, que são inibidores potentes da ativação de plaquetas. Assim, as ações antitrombóticas do HDL são muitas e, portanto, aumentar o HDL pode ser uma estratégia terapêutica importante para reduzir o risco de trombose arterial e venosa.”[1]

Sim, HDL é realmente um anticoagulante potente. Além disso, ele protege o endotélio e aumenta as sínteses de óxido nítrico nas células endoteliais. Portanto, nós não precisamos supor um transporte reverso de colesterol. O HDL pode ser visto de um modo completamente diferente. Eu acho fascinante que no momento em que você decide olhar para as coisas de um ângulo diferente, uma imagem completamente nova surge. Uma vez que tinha a coagulação em mente, eu comecei a perguntar a mim mesmo: A DCV é simplesmente o resultado de uma coagulação de sangue desiquilibrada?

É claro, para isto ser verdade, as placas ateroscleróticas têm de ser, no fundo, coágulos de sangue. Bem, elas são? Em 1856, Karl Von Rokitansky examinou placas ateroscleróticas e declarou que elas eram coágulos de sangue em vários estágios de reparação, ou de degeneração (dependendo do seu ponto de vista). Elas continham tudo o que se encontra em coágulos de sangue: plaquetas, células vermelhas, lipoproteínas, fibrina e todo o resto.

Qual o problema de Karl Von Rokitanky? Ele não conseguia explicar como um coágulo de sangue podia se formar na parede arterial, sob as células endoteliais. A razão pela qual ele não podia explicar isso é que ele não sabia que as Células Progenitoras Endoteliais (CPEs), cobrem os coágulos que se formam nos vasos sanguíneos. Isto, efetivamente, as atrai para as paredes arteriais.

Como ele nunca tinha ouvido falar de CPEs, e não pôde rebater as críticas à sua hipótese, suas ideias nunca se popularizaram e a teoria do colesterol preencheu essa lacuna. O resto, como dizem, é história. 

Algumas semanas atrás eu estava fazendo uma palestra sobre DCV e me perguntaram na fila do café “Vamos lá, o que causa DCV?” O homem que perguntou era um médico, um patologista, recentemente aposentado e que tinha passado sua vida fazendo autópsias e examinando muitas, muitas pessoas que tinham morrido de ataques cardíacos. Eu disse a ele. “Placas são coágulos, e coágulos são placas. É tudo causado pela coagulação sanguínea.”

Ele não estava nem um pouco surpreso. Ele apenas acenou concordando. “Eu achava mesmo.” Ele disse “Eu sempre achei que placas eram coágulos de sangue.” O que mais elas poderiam ser? Há poucas outras coisas que elas poderiam ser.

Por exemplo, se você começa a olhar para as plaquetas e placas, um novo mundo de informações surge. Plaquetas são, se você se lembra, pequenas células sanguíneas que são o principal ingrediente de todos os coágulos de sangue (trombos). Elas são atraídas para locais com dano arterial, onde se amontoam e então estimulam a “cascata de coagulação” que cria coágulos que são firmemente unidos por fibrina.

Se coágulos são placas, e placas são coágulos, você esperaria descobrir que plaquetas estão profundamente envolvidas no processo de formação de placas. Aqui eu cito um longo trecho de um livro chamado “Plaquetas em Desordens Trombóticas e Não-Trombóticas” (Platelets in Thrombotic and Non-Thrombotic Disorders.). Para alguns ele pode ser muito técnico, mas eu sugiro que leiam e releiam.

Nesta sessão é mostrado que coágulos/trombo se formam em áreas de dano/stress endotelial. Além disso, trombos cheio de plaquetas são incorporados aos vasos em locais lesionados... Sim, o processo todo está esboçado aqui. Incluindo o fato de que plaquetas contêm uma substância que causa o crescimento e proliferação de tecido muscular liso (um achado essencial em todas as placas).

Onde está o colesterol nisso tudo...em lugar nenhum. Por favor, leia e digira:

“Von Rokitansky e Virchow foram investigadores pioneiros que relataram que em alguns casos o desenvolvimento de aterosclerose envolvia prévia lesão da parede dos vasos, trombose e a incorporação de trombo à parede do vaso. Em 1887, Welch apresentou uma descrição clara do trombo arterial baseado em experimentos de vários investigadores, mostrando que eles começam com um trombo rico em plaquetas que depois se transformam em massas cheias de fibrina. Muito mais tarde, estas observações foram reenforçadas por Morgan Duguid, More e Franch. Em 1960 nós observamos que plaquetas era depositadas em, e interagiam com, as paredes das artérias com fluxo sanguíneo desequilibrado. Estes são locais em que as lesões ateioscleróticas se desenvolvem e uma maior permeabilidade dos vasos é percebida.
Em 1973, Moore induziu ateiosclerose em coelhos ao lesionar continuamente o endotélio da aorta com um cateter intravenoso, e em 1976, ele e seu grupo mostraram que a administração prévia de um soro anti-plaquetas para induzir trombocitopenia (pouquíssimas plaquetas no sangue) prevenia o desenvolvimento dessas lesões. A descoberta de Ross e seus colegas em 1974 de que plaquetas estimuladas liberam um mitógeno para células musculares lisas (Fator de Crescimento Derivado de Plaquetas, FCDP) surgiu por acaso na observação.
Eles perceberam que o soro preparado a partir de plasma livre de plaquetas não incentivava a proliferação de células musculares em cultura, mas quando eles preparavam soro a partir de plasma rico em plaquetas, ele incentivava o crescimento celular tão efetivamente quanto um preparado a partir de sangue puro. Estes resultados deram ainda mais crédito à teoria de que plaquetas estão envolvidas no desenvolvimento de placas ateroscleróticas porque elas promovem a proliferação de células musculares lisas.
A progressão das placas ateroscleróticas também envolve plaquetas já que foi demonstrado que trombo rico em plaquetas incorporam-se às paredes dos vasos em locais lesionados. Trombos ricos em plaquetas que se formam em placa aterosclerótica rompida podem bloquear o lúmen do vaso, ou podem embolizar (se soltar e viajar para baixo pela artéria).
Quando a tromboembolia atinge vasos pequenos, ocorre dano aos órgãos. Estes conceitos a respeito das plaquetas e aterosclerose sobreviveram ao teste do tempo. A descrição desenvolvida por Ross do desenvolvimento da uma placa arteriosclerótica não é muito conhecida, e os caminhos assinalados, o FCDP ativado, está sendo explorado. A importância da interação de plaquetas com componentes de placa aterosclerótica rompida nas complicações da aterosclerose é amplamente aceita.[2]

Quando releio coisas assim, eu penso: "Vamos lá, gente, vocês sabem que placas são coágulos e coágulos são placas. Está bem na sua cara. Está bem na cara da humanidade há mais de 160 anos. Desde que Rokitansky e Virchow começaram a olhar mais de perto".

Referências

  1. http://cardiovascres.oxfordjournals.org/content/103/3/362
  2. ‘Platelets in Thrombotic and Non-Thrombotic Disorders.’ Edited by Paolo Gresele. Page 5.

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