Entendendo o paladar – ou como melhorar sua dieta explorando certos sabores

por Guilherme B. Ceolin (praticante de paleo/lowcarb desde 2013, agora com quase 30kg a menos!)




Pouco tempo atrás, minha filha de 1 ano teve uma gripe muito forte que evoluiu para uma infecção no ouvido. Foram vários dias de febre, dor, nariz trancado, prostração e falta de apetite. Nosso pediatra explicou o que ela tinha, passou o tratamento e comentou que o apetite iria voltar assim que ela passasse a respirar melhor, já que, com o olfato comprometido, a comida perdia totalmente o sabor. E mesmo tendo completado somente um aniversário até o momento, ela já sabe o que é bom, quer comer coisas com gosto de comida, não com gosto de papel (que a propósito, ela adora mastigar. Temos que ficar de olho para ela não ir ao banheiro e sair mascando um pedaço de papel higiênico. Enfim, crianças explorando o mundo!). 

Indo um pouco mais a fundo na conversa, o pediatra comentou que teve uma época maluca em que alguns médicos sugeriam xilocaína (ou lidocaína) como um supressor de apetite para pacientes obesos, justamente por amortecer a sensibilidade das papilas gustativas da língua. A comida passava a ter gosto de nada e o apelo sensorial de um bom prato caia para quase zero. Ainda hoje a população de alguns lugares nos Andes mascam folhas de coca para amenizar a fome, tanto pelos seus efeitos no cérebro quanto pelas suas propriedades anestésicas (embora tristemente creio que o problema não seja obesidade). Não preciso dizer o quanto esta abordagem estava fadada ao fracasso, embora até hoje o uso de drogas para controle do apetite seja algo recorrente e até preocupante. O próprio médico é, como ele mesmo diz, “um obeso em remissão”, que depois de tentar de tudo, encontrou na dieta de baixo carboidrato a única abordagem efetiva para controlar o peso (embora ele ainda insista em chamar de “dieta da proteína”). Se eu já tinha muita confiança nele como pediatra, agora rolou até uma identificação, tipo “tamo junto, bro!”

Esta experiência com minha filha pequena serviu para lembrar-me mais uma vez como o paladar começa no olfato e como isso é importante para nossa experiência alimentar. Não à toa que dietas monótonas, cheias de restrições ou regras idiotas estão fadadas ao fracasso. A experiência gustativa é muito importante no ato de comer e comida com gosto de sabão não vai ter aderência, por mais que tenha todos os nutrientes que o corpo precisa (quem lembra da moda da ração humana de uns anos atrás?). Isso é algo tão importante que nossa língua tem milhares de células especializadas somente em perceber moléculas químicas e enviar para o cérebro interpretá-las como sabores. Alguns mais agradáveis, outros ruins, outros ainda insuportáveis. 

Evolutivamente, todo este aparato de percepção de sabores tem razão de existir como um mecanismo primário de defesa do organismo (evitar que se comam coisas estragadas ou venenosas), mas, como um efeito colateral, também para impelir o ato de se alimentar, principalmente de algumas coisas específicas que tem grande valor metabólico. Por isso, nossa língua (e também o palato mole) percebe sabores como doce, salgado, ácido e amargo, além de outros sabores menos conhecidos ou duvidosos, os quais contarei abaixo. Cada um destes sabores funciona como marcador de algum nutriente específico, tanto para o bem quanto para o mal. E antes que alguém pergunte, aquele mapa de sabores da língua, que mostra o doce como sendo percebido na ponta da língua, o amargo no fundo, o salgado e o ácido nas laterais, estava equivocado. Nos anos 70 já foi provado que a língua percebe os sabores como um todo, havendo apenas algumas regiões com maior ou menor sensibilidade a certos receptores. Mas, então, como podemos explorar estes sabores e tornar nossas refeições low carb/paleo mais interessantes? É isso que veremos.

Não raro escutamos por aí que uma dieta no estilo que temos seria uma forma monótona de se alimentar, que teríamos que comer só carne, que não teria nada de bom, como bolo, pão, tortas, brigadeiros, etc. Ou ainda frases como: “o que eu vou comer?” “Não é à toa que emagrece, não dá para comer nada, só capim e carne crua” (carne crua por quê? Por causa do nome “paleo”?). Claro que não é isso, sabemos. Hoje, inclusive, tenho uma dieta mais variada do que tinha antes de começar a seguir este estilo de vida, pois passei a comer coisas que nunca tinha pensado (“como folha de beterraba é bom!”). Todavia, é realmente fácil perder-se em meio às muitas coisas que lemos na Internet e passar a ter uma dieta pobre, sem muita variedade, composta só de poucos vegetais folhosos, carnes, ovos e queijos. Mesmo assim, se for apenas isso, dá perfeitamente para mudar a cara dos pratos quase todos os dias, injetar sabor e principalmente, satisfação, nas refeições. E tudo isso de maneira fácil e barata, sem lançar mão de ingredientes exóticos e misteriosos, que custam um rim (o que eu chamo de “comida paleo de boutique”). Para isso vamos entender um pouco sobre outros sabores que comentei nos parágrafos anteriores.

Um dos sabores ao qual me refiro é o umami. Como? Que sabor é este? Bom, para quem nunca ouviu falar dele, o umami foi descrito em 1908, pelo japonês Kikunae Ikeda e confirmado pela ciência em 2000, quando foram descobertos receptores específicos para este gosto na língua. Basicamente, este é o gosto do glutamato monossódico. Mas, glutamato monossódico não é um ingrediente maléfico que a indústria alimentícia coloca nos alimentos para nos viciar? Vamos por partes. O glutamato é sim acrescentado a uma boa gama de alimentos justamente pelo seu papel realçador de sabor. Quanto a ser maléfico, bom, aí depende. A molécula do glutamato ou ácido glutâmico é um aminoácido não essencial bastante abundante, ocorrendo naturalmente em vários alimentos como tomate, queijo parmesão, caldo de carne, frango, cogumelos, algas marinhas e, inclusive, no leite materno. Seu sabor puxa para o salgado, mas sem ser o salgado “clássico”, se é que é possível descrever em palavras algo sensorial de foro tão íntimo. O papel deste composto em termos de paladar, como um dos seus nomes comerciais entrega, é o de realçar o sabor de outros gostos, dando aquela percepção de comida boa, aquela sensação agradável de comer de boca cheia. No leite materno ele interage com a percepção do sabor doce, funcionando ainda como um marcador de proteínas. 

Quanto ao fato de fazer mal, diversos estudos já foram realizados tanto em cobaias quanto em humanos e, exceto se você tiver alguma hipersensibilidade específica ao componente, seu consumo foi considerado seguro. Todavia, o fato de o glutamato ser um ingrediente seguro adicionado pela indústria alimentícia nos seus produtos não vai diminuir os efeitos deletérios da comida ultra-processada como um todo. Devemos sim usar o potencial de melhoramento de sabor que este ingrediente nos proporciona, mas usando suas fontes naturais para fazer isso. E o melhor de tudo, quase todas as fontes de umami natural são low carb. Por exemplo, caldo de frango (feito em casa, fervendo a ave e usando o suco do cozimento, não aquele de tablete) tem em torno de 22mg de glutamato em 100g e nada de carboidrato. Caldo de carne, tem 10mg/100g. Queijo parmesão, 1680mg/100g. Todos alimentos com zero carboidratos que podem ser usado em uma gama de combinações para elaborar pratos deliciosos e prazerosos. Dentre os vegetais, o rei do umami é o tomate, com 246mg/100g de glutamato e pouco mais de 3g de carboidratos líquidos por unidade. O tomate, para quem não é alérgico, é um alimento fantástico para incrementar o gosto dos pratos e a aceitação a novos alimentos. Eu mesmo fiz a experiência aqui com minha filha quando ela começou a comer outros alimentos que não o leite materno. 

A aceitação dela às sopinhas que fazíamos com carne e vegetais não foi boa no começo. Ela se recusava a provar se percebia que não era leite, o que para mim e para minha esposa era algo inédito, já que nosso filho mais velho saiu comendo de tudo logo de cara. Fomos fazendo testes, mexendo nos percentuais de gordura, sal e açucares da sopa, até chegar a um resultado bem satisfatório com a adição de pedaços de tomate refogado com cebola e azeite de oliva. Concluímos que o que estava faltando era aquela sensação de umami na língua que o leite materno proporcionava. Desde então, passamos a explorar a interação do umami de diversas fontes com os outros ingredientes, tanto no cardápio das crianças quanto no dos adultos aqui da família. E os resultados têm sido bastante satisfatórios.

Outros dois sabores que ainda estão em disputa se são reais ou não, são os sabores específicos da gordura (chamado de oleogusto) e do amido (chamado de starchy). As funções destes sabores, se existirem, são bastante óbvias, porque açúcares e gorduras são fontes primárias de energia para o metabolismo. Com relação ao seu uso, não é necessário dizer muita coisa, já que a partir do momento que a lipidofobia perdeu o sentido de existir, ninguém mais precisará se furtar de comer uma barriga de porco frita na banha fervente ou tomar aquele café da manhã com ovos fritos na manteiga. E é possível ainda usar alguns vegetais mais adocicados em algumas receitas sem maiores consequências, uma vez que alimentos como cebola, cenoura, pimentão e beterraba possuem contagem de carboidratos líquidos bastante baixas. Por exemplo, uma xícara de cebola picada tem 13g de carbos líquidos. Todavia, dá perfeitamente para usar um terço disso em um refogado com tomate e ainda assim deixar sua comida muito mais saborosa pela interação do adocicado da cebola com o umami do tomate.

Almôndegas com molho de tomate e parmesão, uma explosão
umami
Ou seja, melhorar o gosto da comida é algo que pode ser muito simples com um mínimo de conhecimento sobre o sabor dos ingredientes e suas interações. Em tempos de Internet, este conhecimento está disponível aos montes, o único cuidado é se usar fontes confiáveis. E isso se aplica até para quem não cozinha, já que sabendo combinar alguns poucos ingredientes, dá para montar um belo e saboroso prato em um buffet por quilo sem muita dificuldade.

No próximo post, irei comentar alguns macetes que os chefs de cozinha usam para transformar coisas muito simples em uma explosão de sabores, as quais são perfeitamente viáveis e factíveis de serem feitas em casa.

Até a próxima!

Guilherme Ceolin é mais um animal bípede e tagarela tentando encontrar seu lugar no mundo, que calhou de ser biólogo e doutor em Botânica. Paga suas contas atuando como professor universitário federal na UFSM-FW, onde desenvolve projetos com temas ligados ao mundo das plantas, sejam elas bonitas ou feias, saborosas ou não. Se diverte, relaxa e desestressa lendo e escrevendo sobre divulgação científica (Deviante, onde também participa do Scicast Podcast) e literatura (Wattpad), brincando com os filhos, pesquisando ingredientes, cozinhando e comendo.

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