O que causa doença cardíaca ? Parte 4
Artigo traduzido por Décio Gazzoni. O original está aqui.
Eu batizei esta pequena série de ‘O que causa doença cardíaca?’ Mas me esforcei para apontar que não há como estabelecer as causas potenciais de doença cardíaca antes de ter clareza sobre o processo subjacente.
O que quero dizer é que pode-se dizer que fumar causa doença cardíaca – e isso está certo. Também pode-se dizer que Lúpus Eritematoso Sistêmico (LES) causa doença cardíaca – e isso também está certo. Pode-se dizer que diabetes tipo II causa doença cardíaca – e isso também está, adivinhe, certo. Pode-se dizer que apneia obstrutiva do sono causa doença cardíaca, e isso também está... certo outra vez. Esteroides... certo de novo. Níveis altos de fibrinogênio... certo mais uma vez. Síndrome de Cushing... certo. Depressão... no alvo.
Mas é preciso poder responder à pergunta: como que essas coisas totalmente diferentes provocam a mesma doença? Ou, talvez possa-se argumentar que todas elas causam doenças diferentes, que aparentam ser exatamente a mesma. Se for assim, estamos perdidos, porque isto significaria que temos uma centena de diferentes tipos de doença cardíaca, cada um com a sua causa individual. (Acredito que isto seja pouco provável, e não discutirei mais esta possibilidade).
Em resumo, não se pode simplesmente sair por aí afirmando que você identificou causa atrás de causa atrás de causa atrás de causa. Até é possível, mas não ajuda em nada a entender o que está acontecendo. Só deixa as coisas cada vez mais confusas. É preciso estabelecer o processo, ou processos, que vincula(m) todas estas causas em potencial. Até que se possa responder isso, você só está basicamente patinando sem sair do lugar.
Eu gastei 30 anos patinando sem sair do lugar nesse caleidoscópio sem fim de fatores de risco antes de decidir que era uma tarefa crítica descobrir o verdadeiro processo de doença subjacente ao DCV. Ao cabo, cheguei a isso.
O processo de 4 estágios
Doença cardíaca – ou o desenvolvimento de placas ateroscleróticas, seguido pelo coágulo sanguíneo final, fatal – consiste de 4 estágios. Estes estágios obviamente se sobrepõem e interagem, e separá-los é um processo ligeiramente artificial. No entanto, penso que um grau de separação é necessário para a compreensão. Você pode misturar tudo de novo depois.
Também devo dizer que, nesta postagem específica, vou olhar apenas para o primeiro estágio deste processo de quatro estágios, que é dano endotelial.
O endotélio
O endotélio é uma camada única de células que reveste todas as artérias e veias. Houve uma época em que se acreditava que as células endoteliais eram essencialmente inertes. Elas apenas ficavam ali, revestindo os vasos sanguíneos, sem fazer muita coisa. Mas, é claro, estas células são enormemente, inacreditavelmente, complexas.
Todavia, para os propósitos desta discussão, vou olhar apenas para três aspectos das células endoteliais.
- Síntese de óxido nítrico
- O que acontece quando as células endoteliais são avariadas
- Fator tissular
Síntese de óxido nítrico
Um papel crítico das células endoteliais é a produção de óxido nítrico (NO). Quando se fala de DCV, esta pequena molécula é uma peça-chave. Primeiramente, ela relaxa o músculo liso nas paredes arteriais, causando a sua relaxação, o que abre a artéria ao seu redor. Isto então provoca redução na pressão sanguínea.
Na medicina convencional, diversos ‘nitratos’ são administrados para pessoas com angina, o que melhora o fluxo sanguíneo e o fornecimento de oxigênio. O primeiro a ser descoberto foi nitroglicerina, que foi rebatizada como gliceril trinitrato e colocada em pílulas que dissolvem sob a língua.
O óxido nítrico também é um poderoso anticoagulante – ele interrompe a coagulação do sangue. Isto é claramente essencial dado que não é desejável que coágulos se formem em paredes de vasos sanguíneos normais, e quando os níveis de NO caem, coagulação sanguínea acidental se torna uma possibilidade concreta.
Células endoteliais saudáveis produzem grandes quantidades de NO. Células endoteliais estressadas e avariadas, não. O que quer dizer que havendo células endoteliais estressadas ou `disfuncionais’, as artérias afinam (constringem) e o sangue dentro delas corre maior risco de coagular.
Nos últimos anos, reconheceu-se que o dano a células endoteliais é um indicador precoce de aterosclerose, como deixado claro neste artigo chamado ‘Disfunção endotelial: o preditor precoce de aterosclerose.’
Disfunção endotelial, caracterizada por biodisponibilidade reduzida de NO, é hoje reconhecida por muitos como um precursor precoce e reversível de aterosclerose. [1]
O que quer dizer que células endoteliais avariadas, ou disfuncionais, podem ser reconhecidas pela sua incapacidade de produzir NO. Olhando pelo lado bom, a presença de NO em abundância no corpo aparentemente mantém as células endoteliais saudáveis.
Existem alguns medicamentos, suplementos e atividades capazes de aumentar a síntese de NO em células endoteliais, e também no restante do corpo. Possivelmente, o fator mais potente de todos é a luz do sol, como ressaltado nesse artigo, em que o título já diz tudo o que precisa ser dito: ‘Irradiação de UVA de corpo inteiro reduz a pressão sanguínea sistêmica através da liberação de óxido nítrico de derivados de óxido nítrico intracutâneo fotolábil.’ [2]
Essencialmente, se você tomar sol, o óxido nítrico é liberado através de todo o corpo, e sua pressão sanguínea cai, conforme suas artérias se abrem. Outros estúdios descobriram muitos outros benefícios significativos da exposição ao sol sobre câncer de pulmão, mama, próstata e colorretal, mas esta história fica para outro dia.
Por ora, o foco aqui é simples. Células endoteliais produzem NO, e esta substância química é vital para a saúde cardiovascular. Qualquer fator que reduza a síntese de NO não é saudável, qualquer fator que aumente a síntese de NO protegerá contra DCV.
O que acontece quando as células endoteliais são avariadas
Não vou olhar em grandes detalhes aqui como as células endoteliais são avariadas, embora haja muitas e muitas coisas que podem impactar negativamente a saúde e o bem-estar delas. Glicemia alta, glicemia baixa, esteroides, fumo, cocaína, LES, apneia obstrutiva do sono, e coisas desse tipo.
Possivelmente o fator mais importante de todos que pode causar danos a células endoteliais é o seguinte: estresse biomecânico. Por estresse biomecânico, quero dizer fluxo sanguíneo turbulento, alongamento e torção do vaso sanguíneo, alta tensão de cisalhamento, alta pressão sanguínea, fluxo sanguíneo rápido, pontos onde o sangue precisa mudar de direção violentamente.
Mudanças violentas de direção ocorrem onde pequenas artérias se ramificam a partir de uma artéria maior, por exemplo onde as artérias carótidas (que fornecem sangue para o cérebro) se ramificam da aorta na base do pescoço. Tais pontos são chamados de bifurcações, e bifurcações são onde as maiores e mais ‘vulneráveis’ placas ateroscleróticas quase sempre são encontradas.
Na realidade, estresse biomecânico extremo ocorre apenas nas maiores artérias do corpo, onde a pressão é alta e o endotélio é sujeito a grandes forças. Um rio com correnteza raivosa. Derrube uma pedra ao lado deste turbilhão e ela rapidamente será puxada e arrastada correnteza abaixo. Veias e artérias no seu pulmão, por outro lado, mais parecem rios calmos, serpenteando por campos de relevo plano.
É praticamente certo que as diferenças enormes de estresse biomecânico com as quais as células endoteliais têm que lidar nas artérias, em comparação com veias e vasos sanguíneos pulmonares, explica completamente o motivo das placas ateroscleróticas nunca se desenvolverem em veias e nunca se desenvolverem em vasos sanguíneos pulmonares, apesar de tais vasos sanguíneos estarem expostos a exatamente os mesmos ‘fatores de risco’ que as artérias.
Segundo em frente. É possível fazer mais do que apenas estressar as células endoteliais. É possível simplesmente arrancá-las do lugar. Se e quando isto acontece, aquele local não apenas fica sem NO, algo muito mais importante entra em cena...
Fator tissular
Em todas as paredes arteriais (e todas as paredes venosas também), pode ser encontrada uma substância chamada Fator Tissular (FT). Este é, de longe, o mais poderoso agente de coagulação conhecido na natureza. Quando o sangue é exposto a ele, um coágulo se forma imediatamente, bem em cima.
Isto faz sentido. Se um vaso sanguíneo grande é avariado, sangrar-se-ia até a morte muito rapidamente, a menos que um coágulo sanguíneo bastante robusto se forme exatamente em cima da área danificada, para tampar o buraco. Outro ponto a se mencionar é que o FT dispara o sistema de coagulação ‘extrínseco’ que simplesmente passa por cima de uma boa parte do sistema de coagulação sanguínea. Um coágulo aqui e agora!
Na verdade, o sistema de coagulação sanguínea é extremamente complexo, e eu não tenho a menor pretensão de cobri-lo completamente aqui. Provavelmente porque eu mesmo não o compreendo completamente. Todavia, simplificando ao máximo, coágulo sanguíneos são compostos de dois componentes-chave: plaquetas e fibrina.
Plaquetas são pequenas células ‘pegajosas’. Elas são ativadas por exposição ao Fator Tissular (FT), quando começam então a se aglomerar para começar a formação do coágulo. Enquanto fazem isto, elas liberam cerca de quinhentas outras substâncias que prosseguem com a ativação da ‘cascata de coagulação’. E então a coisa pega fogo.
O resultado final da ativação de todos estes fatores de coagulação é que pequenos filamentos de proteína chamados de fibrinogênio se juntam para formar um fio longo e muito forte de proteína chamado de fibrina. Estes se embrulham em torno das plaquetas, e de qualquer outra coisa que esteja passando ao redor, e amarra tudo em um coágulo sanguíneo muito firme.
Este coágulo então se prende muito firmemente ao ponto de avaria, e cresce até que todo o dano esteja coberta. Neste ponto, os outros quinhentos fatores que servem para interromper a formação de coágulos sanguíneos (ou impedir que fiquem muito grandes) interrompem o processo de coagulação.
Depois que o processo de coagulação foi colocado em movimento, e então interrompido, tem-se um coágulo sanguíneo preso no interior da parede da artéria. Obviamente, se ele crescesse demais, teria bloqueado completamente a artéria, resultando em um ataque cardíaco ou algo do gênero. Assumindo, no entanto, que ele parou de crescer, antes de bloquear completamente a artéria, o que acontece com ele?
Continua…
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