Defesa do Modelo Insulina-Carboidrato: Uma resposta a Kevin Hall

Artigo traduzido por Hilton Sousa. O original está aqui.

por David Ludwig

Em janeiro, o neurocientista Stephen Guyenet afirmou ter refutado o Modelo Insulina-Carboidrato (ICM) da obesidade em um artigo publicado em seu blog. Eu respondi a Guyenet, argumentando cada uma das suas 11 críticas era baseada em uma falta de compreensão da biologia e ignorância de muita pesquisa relevante. Esse mês, o ICM foi atacado novamente, dessa vez pelo pesquisador Kevin Hall, dos Institutos Nacionais de Saúde, que afirmou em um vídeo amplamente divulgado no YouTube ter "falseado" o conceito. Sua evidência: um estudo piloto de curto prazo, não-randomizado, cujo resumo ele apresentou no Encontro da Federação Mundial para a Obesidade de 2016. Antes de examinar as defíciências do estudo piloto de Hall, eu vou revisar alguns dos problemas mais preocupantes com a visão convencional "calorias que entram, calorias que saem" da obesidade. e a extensiva evidência que suporta o ICM.

Problemas com o modelo "calorias que entram, calorias que saem"


De acordo com a visão convencional, a obesidade resutla de um simple descompasso entre a ingestão e o gasto de calorias. Em nosso ambiente moderno com comida saborosa em todos os cantos e oportunidades inadequadas para atividade física, é fácil consumir mais calorias do que podemos gastar. Então esse excesso – substâncias caloricamente ricas como glicose e ácidos graxos livres – acumulam-se na corrente sanguínea e em última análise é armazenado no tecido adiposo, levando ao ganho de peso. A solução: simplesmente coma menos e mova-se mais.

A abordagem "calorias que entram, calorias que saem" (CICO) considera que todas as calorias são iguais, enfatizando a responsabilidade do indivíduo de manter o balanço calórico. Uma vez que comer um pouco menos e mover-se um pouco mais diariamente parece tão simples, essa visão implica que as pessoas com peso excessivo devem ter falta de conhecimento, força de vontade, disciplina ou caráter. (Esta maneira de pensar provavelmente contribui para a estigmatização direcionada às pessoas com obesidade, em contraste com virtualmente todos os outros problemas médicos).

Mas o modelo CICO tem um problema do tipo "as roupas novas do rei", evidentemente não percebido por seus defensores. Sem tecnologia avançada, nem mesmo o nutricionista mais especialista poderia avaliar o balanço energético de um indivíduo com uma precisão de 350 calorias/dia considerando dieta e nível de atividade física. Uma superestimativa de 10% desse valor causaria obesidade em 1 década. Assim, se o controle consciente do balanço calórico fosse tão crítico para o controle do peso, como é que os humanos conseguiam evitar flutuações extremas em seu peso antes mesmo que o conceito de calorias fosse criado 1 século atrás ?

Mais fundamentalmente, essa abordagem descosidera décadas de pesquisa que demonstram que o peso corporal é controlado mais pela biologia do que pela força de vontade no longo prazo. Com privação calórica, o corpo luta de maneiras previsíveis – incluindo aumento da fome, redução do metabolismo e secreção de hormônios do estresse. Essas marcas registradas da resposta à fome tornam a perda de peso por restrição calórica excessivamente difícil de manter no longo prazo. De fato, apenas uma pequena proporção da população americana já conseguiu manter mesmo uma perda de peso moderada por sequer 1 ano.

Estamos destinados pelos genes ou pelo ambiente ao ganho de peso inexorável ? Precisamos escolher entre obesidade pela vida inteira ou uma luta constante contra a fome ? A cirurgia bariátrica é nossa única solução no longo prazo ? As respostas do ICM a essas questões são não, não e não.

O que é o Modelo Insulina-Carboidrato ?


De acordo com uma maneira radicalmente diferente de pensar, o ganho de peso excessivo ocorre porque as células de gordura foram estimuladas a absorver e armazenar calorias demais, deixando muito poucas delas para o resto do corpo. Nós comemos em excesso em um esforço de manter calorias suficientes na corrente sanguínea para o cérebro, músculos e outros órgãos vitais, mas essas calorias extras em última análise acabam nas células de gordura – criando um ciclo vicioso de fome, alimentação excessiva e ganho de peso. Em outras palavras, comer demais é uma consequência, e não uma causa, de um problema metabólico subjacente.

Considere o que acontece na gravidez. A fome aumentada da mãe e a ingestão de alimentos não fazem o feto crescer; a demanda calórica do feto em crescimento é que deixa mãe faminta e a faz comer mais. O ICM diz que o mesmo acontece àqueles cujo tecido adiposo está sendo estimulado a crescer.

Nós tipicamente consideramos a obesidade um extado de excesso, mas dessa perspectiva o problema é mais parecido com a fome, explicando o motivo pelo qual a fome aumenta e o metabolismo desacelera-se em uma dieta convencional muito antes que o peso normal esteja sequer próximo. Então, restrição calórica resulta em nada mais que tratamento sintomático, destinado a falhar no longo prazo exceto para aqueles mais excepcionalmente disciplinados entre nós.

Mas o que é que faz com que as células adiposas entrem nesse modo de armazenamento sem fim ? A resposta óbvia é muito do hormônio insulina, no qual podemos pensar como um "super adubo" para células adiposas. E o que é que elevou os níveis de insulina ? Isso é apenas endocrinologia básica: todos os carboidratos processados, de digestão rápida, que inundaram nossa dieta durante a loucura dos "alimentos com pouca gordura" dos últimos 40 anos – pão branco, arroz branco, cereais matinais, produtos de batata, biscoitos e é claro, açúcar refinado e bebidas adoçadas.

(Embora esteja além do escopo dessa discussão, as células de gordura podem ser influenciadas por outros fatores na nossas dietas que não sejam carboidratos processados, e outros aspectos da nossa vida que não sejam dieta – tais como privação de sono, estresse e um estilo de vida sedentário demais).

Suporte científico para o ICM


Numerosas linhas de pesquisa proveem fundamentação científica forte para o ICM, incluindo as seguintes:


  • Administração de insulina em animais de laboratório, ou terapia de insulina em pssoas com diabetes, previsivelmente causa ganho de peso, enquanto a deficiência de insulina invariavelmente causa perda de peso


Carboidratos de digestão rápida aumentam o armazenamento de gordura
Ambos os animais tinham o mesmo peso
À esquerda:  dieta de baixo índice glicêmico e digestão lenta
À direita: dieta de alto índice glicêmico e digestão rápida




Gasto energético & Manutenção da perda de peso
Efeitos no gasto energético total (água duplamente rotulada)
BL = base de comparação; LF = pouca gordura; LGI = gordura moderada; VLC = muito pouco carboidrato


  • Depois cerca de 10 a 15% de perda de peso, a taxa metabólica desaba, se compararmos a dieta base com uma dieta pobre em gordura e rica em carboidratos. Mas ao para um mesmo peso corporal, dietas moderadas ou muito pobres em carboidratos evitaram parcial ou totalmente esse declínio. Se essa diferença, de cerca de 325kcal/dia, for sustentada, ela poderia ter um grande impacto na manutenção de perda de peso a longo prazo.
  • A maior qualidade em testes clínicos  —  aqueles na prática produzem diferenças significativas na dieta entre grupos —  mostra uma vantagem substancial de dietas mais ricas em gordura comparadas a dietas mais pobres em gordura. Diversas revisões sistemáticas (aquiaquiaqui e aqui) suportam esse ponto (o oposto do que seria predito por uma abordagem focada em calorias para perda de peso, uma vez que gordura tem mais que o dobro das calorias por grama que os outros macronutrientes).
  • Os benefícios de dietas LCHF extende-se para além do metabolismo, incluindo a redução do risco de doença crônica. Entre os melhores estudos prospectivos observacionais, alimentos caloricamente densos e ricos em gorduras (como nozes, azeite de oliva e chocolate amargo) parecem proteger contra o diabetes e a doença cardíaca, enquanto carboidratos de digestão rápida (produtos de batata, grãos refinados, bebidas açucaradas) aumentam o risco. Há também a conclusão de dois grandes e recentes estudos clínicos. O Estudo Look Ahead mostrou que não há benefício de dietas pobres em gordura sobre a doença cardiovascular. Em contraste, o estudo PREDIMED demonstrou grandes reduções na doença cardiovascular em dietas mais ricas em gorduras com muitas nozes ou azeite de oliva (ated major reductions in cardiovascular disease on higher-fat diets with lots of nuts or olive oil.

As limitações do estudo de Hall


Hall e seus colegas procuraram testar a hipótese de quer trocar "carboidrato dietético por gordura... (vai) aumentar o gasto energético e a oxidação de gordura". Eles admitiram 17 homens com grande peso corporal em uma ala metabólica por 8 semanas, durante as quais os participantes comeram 2 dietas controladas: uma rica em carboidratos (50%) pelas primeiras 4 semanas, seguida por uma muito pobre em carboidratos (5%) pelas próximas 4 semanas. Ao longo do estudo, os pesquisadores mediram quantas calorias e quanto de gordura foi queimada diariamente. Durante sua sessão de apresentação, Hall foi questionado se a restrição dos carboidratos não poderia afetar o gasto calórico. Ele respondeu que seu estudo "basicamente responde a questão... não", e "falseia" o ICM.

Os detalhes completos do estudo ainda precisam ser publicados em um periódico revisado por pares, mas nós temos informação suficiente sobre o desenho do estudo para descartar com confiança a conclusão de Hall.

Antes de recrutar particpantes para estudos clínicos, os investigadores geralmente são demandados a especificar detalhes básicos do desenho em um registro oficial. O registro de Hall chama o projeto de piloto – termo usado para descrever "um estudo preliminar de pequena escala, conduzido para avaliar a factibilidade, tempo, custo, efeitos adversos e dimensão do efeito... e melhorar o desenho antes de iniciar um projeto em larga escala". Em outras palavras, pilotos são conhecidos por terem grandes deficiências de desenho que virtualmente invalidam desfechos definitivos. Além de seu pequeno tamanho e curta duração, o estudo de Hall sofre de ao menos uma falha de primeira ordem – as 2 dietas não foram dadas em sequência aleatória. Então, o estudo é mlehor considerado observacional em sua natureza, um termo que foi explicitamente usado no registro.

Como qualquer curso introdutório em projeto de estudos deixaria claro, pequenos estudos observacionais estão sujeitos a uma infinidade de influências que podem confundir, obscurecer ou exagera relacionamentos aparentes (um problema chamado de "confusão"). Qualquer fator que mude com o tempo – nesse caso relacionado à biologia dos participantes, tratamento, condições ambientais ou medidas – poderia influenciar os dados de maneiras que tornaria impossível estabelecer uma relação de causa e efeito. Mesmo sem mais considerações, sabemos que o estudo simplesmente não pode provar ou desprovar o ICM.

Além disso, com a limitada informação disponível, temos razão para supeitar que os dados são fortemente tendenciosos contra a dieta muito pobre em carboidrtos. Contrário ao objetivo, os participantes não estiveram em balanço calórico, e ao invés perderam peso e gordura ao longo do estudo (o déficit energético cumulativo foi calculado como mais de 16.000kcal). Essa grande falha não seria necessariamente fatal se as dietas tivessem sido oferecidas aleatoriamente, porque então os investigadores poderiam controlar estatisticamente efeitos passados de uma dieta à outra. Mas aqui, os participantes começaram uma dieta muito pobre em carboidratos diversos quilos mais leves, quando comparados à dieta rica em carboidratos. Nós sabemos que a perda de peso reduz o gasto energético. Bastante plausivelmente, esse efeito poderia ter sido de 50 ou mais calorias em um dia contra a dieta muito pobre em carboidratos.

Depois de 4 semanas confinados a uma ala de pesquisa e sem serem capazes de se engajar em níveis de atividade física rotineiros, os participantes provavelmente também começaram a dita low-carb com proporcionalmente menos músculo, ou músculos que funcionavam de maneira diferente. É possível que esse efeito também tenha reduzido o gasto energético em 50 calorias/dia. Hall não tem como saber.

Além disso, os investigadores não reportaram a perda calórica envolvendo as cetonas no hálito e na urina, e a gordura nas fezes. Tais perdas deveriam ter sido maiores na dieta muito pobre em carbos (ou seja, cetogênica). Mais 50 calorias/dia ?

Consideremos os resultados conforme escritos no resumo do estudo. A dieta muito pobre em carboidratos "aumentou o gasto energético total (+57±13 kcal/d, p=0.0004) e o gasto energético durante o sono (+89±14 kcal/d, p<0.0001) medido por câmaras metabólicas. O gasto energético medido por água duplamente rotulada foi aumentado em 151±63 kcal/d (p=0.03).”

Assim como alguns outros, você pode agora estar sentindo dissonância cognitiva. Os resultados mostraram que a redução dos carboidratos aumentou o gasto energético conforme previsto! Além das expectativas para estudos pilotos, seus resultados foram estatisticamente significativos.

Hall descarta esse esses resultados como biologicamente insignificantes, mas de acordo com seus próprios cálculos, uma diferença energética de 100 a 150 calorias/dia seria um grande componente da epidemia de obesidade. Mais importante, o piloto não foi projetado para fazer determinações apuradas das diferenças entre as dietas: que qualquer efeito fosse sequer observado é impressionante. E conforme considerado acima, o estudo quase certamente subestimou o efeito real das dietas muito pobre em carboidratos. Usando as estimativas acima para corrigir pelo provável viés, a dieta muito pobre em carboidratos podera facilmente ter aumentado o gasto calórico em 250-300 calorias/dia ou mais – em concordância próxima com as descobertas que meus colegas e eu publicamos no JAMA em 2012.

Captura de tela do vídeo de Hall no YouTube.
A linha tracejada reflete a oxidação de gordura corporal

Hall ainda argumenta que maneira como as calorias e a oxidação de gorduras mudou durante os períodos de 4 semanas exclui um efeito significativo no longo prazo – mas tal inferência extrapola muito os dados. Simplesmente não temos idéia de qual seriam os relacionamentos reais ao longo do tempo em um estudo que controlasse as grandes fotnes de confusão. (Não é de surpreender que a oxidação de gordura corporal reduziu-se transientemente na dieta muito pobre em carboidratos, já que os participantes habitualmente consumindo uma dieta pobre em gordura adaptaram-se a uma ingestão maior de gorduras – veja a linha tracejada apontada pela seta vermelha da esqueda). Apesar de não ser levado em consideração em seus comentários, os dados de Hall sugerem uma aceleração na oxidação de gordura durante a 3a e 4a semanas da dieta rica em gorduras – vide a seta vermelha da direita).

Longe de falsear o ICM, o estudo de Hall o apóia. Um resumo mais preciso que o que ele distribuiu na sessão seria assim:

Nós encontramos evidência preliminar para um efeito excepcional de uma dieta muito pobre em carboidratos sobre o metabolismo energético. Essa descoberta sugere que reduzir os carboidratos pode ser vantajoso em relação às abordagens convencionais para manutenção da perda de peso. Por causa das limitações fundamentais do estudo, esses dados devem ser interpretados cuidadosamenteaté que se faça pesuqisas de longo prazo, definitivas.

Termino com uma nota pessoal. Eu conheço Kevin Hall há anos, gostei das nossas interações e aprendi muito com ele. Ele é um pesquisador criativo que fez contribuições importantes para o campo da obesidade. Nós claramente diferimos em nossa visão do ICM e do seu estudo. Mas debate científico vigoroso tem um papel crítico e validado pelo tempo na ciência e ana busca pela verdade. Eu ofereço esse artigo com respeito colegial por ele.

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