Doença arterial coronariana como "canos entupidos": um modelo enganoso
Artigo traduzido por Hilton Sousa. O original está aqui.
Texto bacana do Michael Rothberg: demonstra que mesmo dentro da medicina convencional, que aplaude as estatinas, há um movimento em direção à mudança...
por Michael Rothberg
Introdução
Uma propaganda recente na contracapa de uma edição especial da revista New York Times dizia "é irônico que um encanador tenha nos procurado para remover um entupimento" [1]. O anúncio referia-se a médicos do laboratório de cateterismo cardíaco como "um tipo especializado de encanador", e observava que o paciente da propaganda retornou ao trabalho "apenas 2 dias após ter seus próprios canos limpos". Apesar da imagem de que as artérias coronárias são como canos de cozinha entupidos por gordura ser simples, familiar e evocativa, ela também é errada.
Modelos conceituais nos ajudam a dar sentido a um mundo complexo. Tanto na pesquisa quanto na clínica prática, nossos modelos conceituais guiam nossas decisões sobre quais desfechos medir, quais variáveis de confusão ajustar, e quais pacientes têm probabilidade de se beneficiarem de um dado tratamento. Por exemplo, o modelo do câncer de cérvix como consequência da infecção por certas cepas do vírus do papiloma humano levou ao desenvolvimento de uma vacina que previne contra o câncer. entretanto, quando um modelo conceitual é falho, como no caso da analogia com os canos entupidos, esperaria-se que nós o descartemos e substituamos por um mais preciso. Em "Estrutura das Revoluções Científicas", Kuhn observou que tais mudanças de paradigma não ocorrem facilmente [2]. Ao invés, os cientistas apegam-se tenazmente ao modelo antigo e aceito, apesar de sua incapacidade de explicar os fenômenos observados. Na medicina também, erros embutidos em um modelo obsoleto podem durar por anos, influenciando a prática dos médicos e as expectativas dos pacientes. Modelos simples, especialmente aqueles com os quais trabalhamos por anos para que o público compreendesse, podem ser os mais difíceis de abandonar.
Erro número 1: Estreitamento arterial é o problema
A analogia da doença arterial estável com canos entupidos tem sido particularmente difícil de demover. Tal representação teve suas origens nos anos 1970, quando pesquisadores observaram que o grau de obstrução coronária correlacionava-se com o risco subsequente de infarto do miocárdio [3]. De acordo com esse modelo, placas de colesterol nas paredes arteriais lentamente reduzem o lúmen, causando primeiramente uma isquemia lenta, depois angina e eventualmente infarto. O diagnóstico começa com teste de estresse fisiológico, procura por descompasso entre oferta e demanda, e progride para angiografia para achar os bloqueios. Tratamentos baseados nessa teoria incluem tanto o bypass coronariano e a angioplastia, sendo a última frequentemente explicada aos pacientes como um "Roto-Rooter" – ou no caso do anúncio da revista, como Rotablator. Resultados de tais procedimentos de revascularização são visualmente chamativos e, na doença estável, podem levar à conclusão errônea de que o problema do encanamento foi corrigido e que o risco de infarto do miocárdio foi reduzido. De fato, proponentes iniciais do bypass da artéria coronariana estavam tão convencidos pela evidência angiográfica do sucesso que questionavam a necessidade de conduzir estudos randomizados para avaliar o impacto sobre infarto ou a mortalidade [4].
Quatro décadas depois, sabemos que as interações entre a gordura da dieta, colesterol sérico e endotélio arterial são complexas e dinâmicas [5]. Apesar de estenoses de alto grau poderem causar angina crônica, a maioria dos eventos cardíacos ocorrem em lesões que parecem leves em angiografias prévias [6]. Essas placas contêm um núcleo rico em lipídios, coberto por uma cápsula fibromatosa. Células inflamatórias (por exemplo, macrófagos e mastócitos) dentro da placa podem tornar-se ativos por micróbios, auto-antígenos ou moléculas inflamatórias (modelo da placa ativa). As células ativadas secretam citocinas e proteases que enfraquecem a cápsula fibrosa, fazendo que se eroda ou rompa. O subendotélio esposto e os fatores pró-coagulantes precipitam agregação de plaquetas e formação local de trombo, às vezes levando ao infarto. Antes da ruptura, tais placas geralmente não lmitam o fluxo e podem ser invisíveis à angiografia e aos testes de estresse. Elas não são passíveis, portanto, de intervenção coronária percutânea (PCI).
Para piorar a confusão, no estabelecimento do infarto do miocárdio, o modelo de cano obstruído é preciso, e as intervenções voltadas à eliminação do trombo – seja via trombolíticos ou angioplastia – pode salvar vidas. Mas para pacientes com doença estável, intervenções locais só podem aliviar os sintomas; elas não podem evitar infartos do miocárdio fturos. De fato, ao menos 12 estudos randomizados conduzidos entre 1987 e 2007 e envolvendo mais de 5000 pacientes não encontraram redução em infartos do miocárdio atribuível à angioplastia em qualquer forma [7, 8]. Apesar dessa evidência fortíssima, o modelo do encanamento, completo com entupimentos que podem ser consertados, continua a ser usado para explicar a doença coronária estável aos pacientes, que compreensivelmente assumem que PCI vai evitar ataques cardíacos [9]. Cardiologistas também apegam-se à crença de que para pacientes com doença coronariana estável, uma artéria aberta é benéfica [10] e a abordagem à doença arterial coronariana estável continua a ser a busca por isquemia. Não surpreendentemente, uma minoria substancial de cardiologistas também acredita que angioplastia e stents eletivos podem evitar infartos [9]. Tais crenças traduzem-se em prática: quase metade das PCIs eletivas podem ser inapropriadas [11].
Erro número 2: Gordura entope as artérias
O modelo do encanmento – no qual a gordura ou o colesterol da dieta são lentamente depositados nas paredes arteriais, levando a bloqueios – também perpetua o erro sobre o consumo de gordura. Apesar de as placas ateromatosas conterem lipídios, elas não são compostas da gordura que vem diretamente da dieta. Lipoproteína de baixa densidade (LDL) é produzida primariamente no fígado e pode infiltrar o endotélio vascular, onde pode iniciar uma resposta inflamatória complexa, especialmente em locais de tensão hemodinâmico [5]. Essa resposta inflamatória pode levar à remodelagem arterial, na qual o crescimento da placa dentro da parede dos vasos é acomodada por um alargamento do vaso. Nesse caso, as placas podem não reduzir o lúmene e ficam portanto escondidas da angiografia. Essas placas são particularmente perigosas tanto por serem propensas à ruptura quanto porque antes da ruptura elas não limitam o fluxo e por conseguinte não induzem a formação de colaterais protetores. Lipoproteína de alta densidade (HDL) remove o LDL de tecidos periféricos através do transporte reverso de colesterol para o fígado e pode ter propriedades antiinflamatórias [12]. Apesar de a gordura saturada aumentar o colesterol LDL, ela também aumenta o HDL, então o efeito sobre o risco cardíaco é neutro.
As recomendações dietéticas antigas da Associação Americana de Cardiologia (AHA) refletiam crenças sobre a gordura nos anos 1980. Elas recomendavam limitar a gordura da dieta a 30% das calorias, e godura saturada a 10%, com base na densidade calórica da gordura e na associação da gordura saturada com doença coronariana entre países [13]. A interpretação dessa evidência foi seletiva e ignorou as baixas taxas de doença cardíaca em Creta e entre os inuit, bem como o notório "Paradoxo Francês" – no qual notou-se que os franceses consomem dietas ricas tanto em gorduras quanto em gorduras saturadas, e ainda assim têm baixos níveis de doença cardíaca [14, 15]. A partir dessas recomendações, dietas pobres em gorduras tornaram-se sinônimos de "saudáveis ao coração" e deram a luz a uma geração de substitutos com pouca gordura e muito açúcar.
Estudos observacionais mais recentes não suportam o uso de dietas low-fat. Em 1997, o Estudo da Saúde das Enfermeiras demonstrou que após os ajustes adequados, nem o total de gordura consumida nem o de gordura saturada estavam ligados com doença cardíaca, e que gorduras poliinsaturadas eram na prática protetoras [16]. Estudos subsequentes também não acharam ligação entre godrura saturada e doença cardíaca [17, 18]. Ao atualizar-se com a nova evidência, a AHA mudou suas rcomendações dietéticas eliminando as restrições na gordura total e reconhecendo que dietas pobres em gorduras tinham efeitos adversos sobre o HDL [19]. Mas para pacientes com LDL elevado, eles aumentaram as restrições sobre a gordura satura e agora recomendam que o consumo não exceda 7% das calorias totais. Apesar de ser discutível que a redução da gordura saturada aumente o consumo da poliinsaturada, em muitos produtos a gordura é simplesmente substituída por açúcar. Mais recentemente, AHA recomendou que as pessoas limitassem sua ingestão de açúcar, que parece contribuir para a obseidade, hipertensão e subsequentemente doença coronariana [20]. Entretanto, paciente s muitos médicos não receberam a mensagem. O selo de "saudável para o coração" da AHA ainda aparece em um grande número de alimentos pobres em gordura e ricos em açúcar, incluindo suco e cereais açucarados [21], enquanto os pacientes continuam a crer que a gordura dietética, especialmente a gordura saturada encontrada em queijos e bacon, é a causa da doença cardíaca. Uma pesquisa recente revelou que 73% dos pacientes acreditava que comer comida frita aumenta o risco de infarto – o mesmo número que acreditava que tabagismo fazia isso [22]. Uma usca no Google por "gordura saturada entope artérias" retorna 195.000 resultados (N.T.: buscando os termos em português traz bem menos resultados), muitos oferecendo conselhos sobre dieta saudável.
Promovendo evidência para médicos e pacientes
Como acabamos com esses erros ? Primeiramente, instituições como a AHA deveriam ser mais proativas em educar médicos sobre o modelo inflamatório da doença e como comunicá-lo aos pacientes. O guia 2011 para PCIs [23] da Fundação do Colegiado Americano de Cardiologia / AHA / Sociedade pela Angiografia e Intervenção Cardiovascular, é um passo na direção correta – ao afirmar que pacientes considerando PCI "deveriam compreender quando o procedimento está sendo feito na tentativa de melhorar sintomas, sobrevivência, ou ambos". O guia aponta que "a avaliação de 61 estudos sobre PCI conduzidos ao longo de diversas décadas mostra que apesar da melhora na tecnologia e farmacoterapia do PCI, essa técnica ainda não demonstrou que reduz o risco de morte ou infarto do miocárdio em pacientes sem síndrome coronariana aguda recente", mas não faz menção à patofisiologia. Poucos questionamentos foram feitos aos 61 estudos randomizados, e ainda assim os autores do guia classificam a evidência como nível B (populações limitadas ou dados derivados de um único estudo randomizado ou de estudos não-randomizados). Uma explicação para essse ceticismo persistente é que os clínicos e investigadores, trabalhando a partir de um modelo conceitual obsoleto, focaram-se erroneamente em melhorar a tecnologia que mantem abertas lesões que limitam o fluox de sangue, acreditando que stents melhores eventualmente produziriam um benefício sobre a mortalidade em doença estável. O modelo inflamatório da doença deixa claro que tais tentaivas estão destinadas a falhar porque placas vulneráveis não podem ser identificadas ou receber stents antes da ruptura. Apesar de alguns argumentarem que o infarto do miocárdio também possa ocorrer no local de estenoses limitantes de fluxo, modelos matemáticos sugerem que tais lesões contribuem relativamente pouco para o risco modificável [24]. Isso é demonstrado empiricamente pela ausência de qualquer vantagem, em termos de sobrevivência, quando stents de metal simples são comparados por angioplastia com balões ou quando stents liberadores de fármacos são comparados com os de metal simples. Entretanto, testes adicionais comparando PCI seguido de terapia médica de ponta com terapia médica de ponta apenas, continuam. Por exemplo, o estudo FAME-2 recentemente comparou essas 2 terapias em pacientes com estenoses funcionais significativa, conforme medido pela reserva de fluxo fracionária [25]. Novamente, nenhuma diferença estatisticamente significativa foi observada entre os braços do estudo em termos de infarto do miocárdio ou mortalidade. O estudo foi interrompido prematuramente por causa de uma redução nas revascularizações entre pacientes que submeteram-se a PCI, provando que a execução imediata de PCI elimina a necessidade de fazer PCI em 1 a cada 6 pacientes posteriormente. Em contraste, a cirurgia de bypass de 3 vasos coronarianos com enxerto, que provê fluxo ao redor dasa placas, foi demonstrada como capaz de reduzir a mortalidade – conforme o modelo inflamatório prediz. Colocar a evidência do guia no contexto de um modelo conceitual poderia oferecer uma maneira para os clínicos compreenderem a acreditarem nos resultados.
Além disso, hospitais e médicos deveiram parar de usar a velha analogia do encanamento em propagandas, sites e material educacional, e ao obter o consentimento informado para PCI. Claramente, o processo consentimento corrente no que diz respeito a PCI para angina estável é profundamente falho porque a maioria dos pacientes não comrpeende corretament os benefícios do procedimento ao qual estão prestes a submeter, e podem não ter angina [9, 26]. Como então esse novo modelo pode ser comunicado de maneira simples aos pacientes ? Os médicos poderiam começar explicando que a doença arterial coronariana, seja diagnosticada por angiografia ou teste de estresse, é uma doença inflamatória na qual o colesterol do sangue é depositado nas paredes arteriais, causando uma reação inflamatória, como uma espinha. Quando essas espinhas estouram, elas fazem com que o sangue nas artérias coagule no local. Então, para pacientes que têm doença coronariana, é crucial dar passos para reduzir a inflamação, incluindo tanto mudanças de estilo de vida baseadas em vidências (parar de fumar, exercitar-se [27], reduzir o estresse [28] e uma dieta mediterrânea) [29, 30] e tomar medicação que reduz a inflamação e evite a tromobose (aspirina e estatinas) [31]. Médicos devem deixar claro que para evitar infartos, essas são s únicas medidas efetivas. Se os pacientes tiverem sintomas isquêmicos (muitos não têm), então eles podem receber a noção de que placas velhas, como velhas espinhas, podem obstruir parcialmente artérias e causar sintomas – e que esses sintomas podem ser melhorados com medicamentos. Se os sintomas persistirem apesar da terapia médica máxima, pode-se oferecer aos pacientes o PCI para aliviar os sintomas.
Esses passos provavelmente vão encontrar oposição, parcialmente porque é difícil admitir que no passado nós entendemos tudo errado e fizemos o que agora parecem ser procedimentos desnecessários, mas também porque nosso sistema de pagamento corrente continua a recompensar intervenções baseadas no modelo antigo e procedimentos cardíacos são uma importante fonte de renda dos hospitais. É imporovável que os hospitais comecem a fazer propaganda do poder dos medicamentos genéricos e das mudanças de estilo de vida para combater a doença cardíaca. Nem os médicos vão abandonar rapidamente uma prática que tanto suporta sua renda e que parece fazer sentido. O uso de critérios apropriados, especialmente se ligados ao reenbolso, poderia prover uma vontade de mudar [32] – mas apenas se os pagantes, incluindo o governo, estiverem querendo implementá-los. No ambiente atual, as seguradoras têm baixa probabilidade de reforçar critérios que sofrem oposição de intervencionistas proeminentes como não sendo baseados em evidência ou em cirtérios baseados no no paciente [33]. Talvez no mundo vindouro em que haja uma reforma na maneira de fazer pagamentos, médicos de organizações de saúde responsáveis possam escolher adotar critérios apropriados como maneira de manter seus próprios custos baixos. Nesse caso, modelos melhores deveriam ser adotados como maneira de ter um cuidado mais centrado no paciente com melhor custo-benefício.
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