Pintando a janela do porão
Uns dias atrás, me mandaram o artigo abaixo (o original está aqui). As minhas considerações estão lá no final.
Nova enzima descoberta evita que o açúcar seja armazenado como gordura
por Robin Andrews
É janeiro, e muitos de vocês provavelmente estão lutando para entrar em uma dieta numa tentativa de perder um pouco do peso adquirido pós-Natal. A conversão feita pelo seu corpo, de todo o excesso de açúcar consumido em gordura, certamente não ajuda – mas um time de pesquisadores da Universidade de Montreal pode ter achado uma maneira de regular isso. Conforme reportado no site do PNAS, uma nova enzima foi descoberta, e ela pode controlar diretamente a maneira como seu corpo converte açúcar e gordura.
Células de mamíferos usam tanto açúcar (glicose) quanto ácidos graxos como suas principais fontes de energia. Muito dessa glicose é armazenada no fígado como glicogênio, um componente denso que pode ser mobilizado quando o corpo precisa produzir energia. Aqueles que vivem em países desenvolvidos tendem a ter dietas muito ricas em açúcar, fornecendo a si mesmo muito mais glicose do que seu corpo precisa no momento. Um excesso de carboidratos também vai produzir mais açúcar do que o corpo é capaz de utilizar imediatamente. Qualquer grande excesso de glicose é convertido em gordura e armazenado, e o acúmulo pode levar à obesidade.
Insulina, um hormônio produzido pelas células beta do pâncreas, faz com que o fígado converta glicose em glicogênio. Aqueles com diabetes tipo 2 não produzem insulina suficiente quando necessário, ou produzem insulina ineficaz, que não é capaz de interagir com a glicose do sangue – fazendo com que essa glicose permaneça em circulação.
Glicose em excesso também leva à geração excessiva de glicerol 3-fosfato (Gro3P) dentro das células. Normalmente, o Gro3P participa de muitos processos celulares, incluindo a formação de gorduras (lipídeos) e a conversão de glicose em outros componentes úteis (glicólise).
Entretato, Gro3P em excesso é tóxico às células; tecidos podem ser danificados e os processos metabólicos de conversão do açúcar e das gorduras são incapazes de operar apropriadamente. O distúrbio destes pode levar ao diabetes tipo 2 e à doença cardiovascular. Assim, excesso de glicose no corpo é essencialmente tóxico por uma variedade de razões.
Como esse novo estudo detalha, uma enzima chamada Gro3P fosfatase, ou G3PP, foi descoberta escondendo-se em todos os tipos de tecidos do corpo. Ela parece ser capaz de regular tanto a conversão de glicose e gordura em outros compostos, quanto a produção de adenosina trifosfato (ATP), que é a "moeda energética" das células. Isso significa que G3PP tem influência direta sobre como glicose e gorduras são usadas pelo corpo.
Usando ratos de laboratório, os pesquisadores mostraram que aumentar a atividade da G3PP em seus fígados em última análise reduz o seu ganho de pso e a habilidade de produzir glicose no fígado. Murthy Madiraju, um pesquisador do Centro de Pesquisa Hospitalar da Universidade de Montreal, disse que "G3PP evita a formação excessiva e o armazenamento de gordura, e também reduz a produção excessiva de glicose no fígado, um dos grandes problemas do diabetes"
Isso oferece um ponto de apoio para pesquisadores que esperam manipular a enzima em humanos. Ao usar G3PP para alterar como a glicose e gorduras são absorvidas e produzidas, aqueles incapazes de controlar esses processos – tais como as pessoas que sofrem de diabetes tipo 2 – poderiam ser potencialmente tratadas.
Bonito, não é ?
Agora, com essa nova enzima, logo-logo vão soltar (mais) um remédio que evita o armazenamento do açúcar como gordura. E que tal comer menos açúcar ? Ah, isso não vende.
A maneira como a indústria farmacêutica e a medicina raciocinam é clara: tem um jeito direto de fazer o problema sumir ? (Veja bem, não-necessariamente falamos de cura – e sim de eliminação de sintomas). Quanto custa ? Por quanto dá para vender ? Se existir e for lucrativo, farão.
Foi a mesma coisa com a insulina e a metformina: até 1922, o único tratamento que existia para diabetes era dieta. O jeito era reduzir os carboidratos. Quando descobriram a insulina e posteriormente sintetizaram a metformina, o raciocínio mudou para "agora eu posso deixar o diabético comer o que ele quiser, e abaixo a glicemia à força".
Quando começaram aplicar dieta cetogênica para tratamento de epilepsia (década de 1920), não havia anticonvulsivantes. Com a sintetização da difenil-hidantoína (o primeiro anticonvulsivante), dieta cetogênica foi caindo em desuso até os anos 1990, quando começou a ser retomada (com uso em pessoas que não respondem aos medicamentos).
Na década de 1960, descobriram que o glicogênio era o responsável por prover energia para atividades de tiro curto. Com isso, o raciocínio foi "então para tiro longo, eu preciso ir repondo o glicogênio". Tome-lhe uma indústria de géis e bebidas energéticas para reabastecer os carbos do cara enquanto ele corre. Só "recentemente" começaram a falar abertamente que o corpo pode usar a gordura armazenada para o tiro longo. Afinal, a gordura do corpo não está lá para enfeite – é energia armazenada, então por que não usá-la ?
Uns meses atrás, eu vi pesquisas sobre o uso de corpos cetônicos para combate de Alzheimer. Os resultados são promissores. O raciocínio do artigo que li era "que legal, parece que funciona! Podemos pensar então em um medicamento/suplemento de corpos cetônicos para tratar Alzheimer". E que tal reduzir os carbos ao mínimo, e deixar os corpos cetônicos serem naturalmente produzidos pelo corpo ? É um estado fisiológico descrito há 60 anos, e tem estudos de média duração (5-6 anos) mostrando que manter-se em cetose (ou seja, produzindo quantidades altas de corpos cetônicos) não é deletério à saúde. Não vale a pena insistir em estudos mais longos, e jogar o suplemento para escanteio ?
Você percebe que todos os casos seguem um mesmo padrão ? É o que chamamos de "síndrome da janela do porão".
Pense no seguinte: você precisa pintar a janela do porão da sua casa, que fica ao nível da rua. Para fazer isso, você cava um buraco bem fundo ao lado da janela, do lado de fora da casa. Aí você coloca uma escada dentro dele e sobe nela até ter altura suficiente para a pintura.
Não era mais fácil simplesmente ter abaixado-se para pintar ?
Teimamos em inventar soluções complicadíssimas para problemas simples. Mas nesse caso, onde ficaria o lucro das empresas que vendem equipamento para abrir buracos e escadas ?
Veja bem, certamente há quem prefira tomar metformina a restringir os carboidratos. Certamente haverá quem prefira tomar os tais suplementos para Alzheimer a praticar dieta cetogênica. Cada um é dono do seu time. O que mata é o direcionamento dado: uma vez que se conheça um caminho que envolve dinheiro, é difícil sair dele – e quem sofre com isso é o público consumidor, que muitas vezes não fica sequer sabendo da possibilidade. Quantos diabéticos você conhece, que sabem que o diabetes é perfeitamente controlável apenas com dieta ?
Reflita.
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