Barriga de carneiro, traseiro de peru e a verdade que não vende
Hoje, um leitor me perguntou se eu tinha visto a reportagem sobre a obesidade em Tonga, que saiu no G1. O título é bastante sugestivo: "As razões por trás da epidemia de obesidade no país mais gordo do mundo".
Tonga tem 40% de sua população diabética, e é emblemático numa área que por si é cheia de problemas com a doença: as ilhas do Pacífico. Para ter base de comparação, o Brasil tem 9% de diabéticos e os EUA têm 10% (embora no total mais de 30% seja diabético ou pré-diabético).
(No link imediatamente acima, veja quem são os patrocinadores do relatório anual da Federação Internacional do Diabetes. Veja e chore)
O texto em si é uma coleção de afirmações sem referência, e não enrola nem um bocadinho para dizer que "a culpa dos tonganeses serem o povo mais diabético e obeso do mundo, é porque eles comem carnes baratas e gordurosas": fralda de costela de carneiro e traseiros de peru, importados a baixo custo da Nova Zelândia.
Segundo os gênios bem-informados do G1, tais cortes de carne baratos e gordurosos são os culpados por destruírem a saúde do país.
Lá pelo meio do artigo, vem a pérola (grifo meu):
Mas a epidemia de obesidade não se deve apenas às fraldas de carneiro ou rabos de peru. Toneladas de carne enlatada são consumidas todos os anos ─ há latas de até 2,7 quilos.
Isso sem falar nos refrigerantes.
Ao que parece, Tonga é também o lar de grandes bebedores de refrigerante. Mas a culpa pelo diabetes e obesidade é da carne – aquele alimento que sendo cheio de gordura e proteína, virtualmente não eleva a glicemia e nem a insulinemia.
Entendeu, né ?
Eu fiz uma busca rápida, e achei o site da Fizz, uma organização que combate o consumo de refrigerante no mundo. O relatório deles de 2014 sobre consumo de refris e doenças nas ilhas do Pacífico está disponível aqui.
Trago aqui alguns trechos do relatório:
As ilhas e territórios do Pacífico (PICTs) têm uma das taxas mais altas de obesidade e diabetes no mundo. Pesquisas já demonstram uma ligação forte entre o consumo de bebidas açucaradas (SSBs) e o risco subsequente de sobrepeso, obesidade, cáries e diabetes tipo 2. Para abordar o impacto das SSBs sobre as doenças não-transmissíveis, é crucial compreender o nível de seu consumo nas PICTs.
E continua
O volume de importação de refrigerantes foi uma maneira factível de estimar o consumo total dessas bebidas nas PICTs, e de avaliar as tendências ao longo do tempo. 7 dos 11 PICTs contatados que não produzem refrigerantes foram capazes de prover o volume de bebida importada. Em 2011, a estimativa de consumo de refrigerantes por pessoa foi de:
- 84 litros em Palau
- 47 litros nas Ilhas Marianas
- 41 litros em Niue
- 31 litros em Tonga
- 22 litros nos Estados Federados da Micronésia
- 8 litros em Tuvalu
- 1 litro em Kiribati
Veja bem, bebe-se menos refri em Tonga do que no Brasil (90 litros/pessoa/ano) e nos EUA (160 litros/pessoa/ano). O que poderia explicar então o fato deles serem mais diabéticos que nós ? Bem, a reportagem do G1 deu pelo menos essa bola dentro: os povos do Pacífico, bem como os nativos americanos, parecem ter uma genética bastante sensível à comida-lixo: eles têm uma capacidade enorme de acumular gordura, e especula-se que isso seja um traço útil para épocas de escassez.
Só que no nosso mundo de superabundância de lixo, as taxas de obesidade entre esses povos são alarmantes – quando eles se encontram comendo comida de brancos. Simples assim.
Vide os índios Pima, vide os índios do Xingu – brasileiros entre os quais o diabetes chega a 42%.
O percentual de pessoas com sobrepeso chegou a 90% em Nauru (outra ilha do Pacífico), em 2008 (a maior prevalência de sobrepeso do mundo).
55% das crianças de Tonga entre 13 e 15 anos tomam um ou mais refrigerantes por dia.
E de Kiribati, você se lembra ? Já contei o causo aqui. Embora tomem pouco refri pelo jeito, a dieta da ilha é fortemente baseada em alimentos processados que são doados pela ONU – o que resulta em 20 amputações por semana e 26% dos habitantes diabéticos.
O argumento da genética é engraçado: culpamos os malvados genes polinésios pela engorda desenfreada dos nativos das ilhas. Mas lembre-se do experimento de O'Dea (1985). A Dra. O'Dea conseguiu reverter o diabetes de 10 aborígines australianos em 7 semanas. O segredo ? Não, não foi terapia genética.
Ela os propôs voltarem a viver como caçadores-coletores, vivendo da terra. O resultado ? Saúde (e uma perda de peso média de 7.5kg).
Sobre a reportagem do G1, só posso repetir o que já disse tantas vezes: a verdade não vende.
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