Os muitos valores do zero
À medida que as pessoas ficaram mais conscientes sobre aquilo que comiam – fruto de infindáveis campanhas veiculadas pelo governo e pela mídia – a indústria foi obrigada a exibir no rótulo diversas informações nutricionais sobre os alimentos que produz.
Até aí, tudo bem – a escolha consciente é o primeiro passo em direção a uma alimentação mais saudável (ou, em se tratando de comida industrializada, "uma alimentação menos ruim").
O caso é que, como bem sabemos, a indústria nunca perde. Qualquer passo que ela dá, por mais que aparentemente seja em prol do consumidor, visa cumprir o objetivo de qualquer negócio: gerar lucro.
O resultado disso é que os rótulos passaram a estampar os percentuais das "famigeradas" gorduras saturadas, das malvadas gorduras trans, do total de carboidratos (embora espertamente refiram-se aos "carboidratos totais" e às "fibras", nunca ou raramente mencionando o "açúcar").
Mas quando você compra um produto e vê escrito "zero gordura trans", como ter certeza de que REALMENTE é zero ? Bem, má notícia para quem gosta de comida em pacotes: você nunca vai ter certeza. E o motivo é simples: a ANVISA dá a faca e o queijo para a indústria decidir o que é e o que não é "zero".
A Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 360/2003 define o seguinte:
Há alguns pontos-chave aqui:
"Por porção"
Quem define o tamanho da porção é o fabricante, então fica fácil: digamos que um chocolate "normal", de 100g tenha 80g de açúcar (isso é bem comum). A porção é de 10g, então esse chocolate tem 8g de açúcar por porção. Bem longe de zero!
A indústria então lança a versão "light", que tem "apenas" 15g de açúcar em 100g do produto. Se fôssemos considerar a mesma porção de 10g, então o chocolate ainda teria 1.5g/porção – continuaria longe de zero. Mas aí, voilà!, para o "light", definimos que a porção é de 2g apenas. Isso magicamente faz com que o chocolate passe a ter 0.3g de açúcar por porção. Pronto, ele pode ser declarado ZERO!
Agora pergunte-se: qual comedor contumaz de chocolate compra uma barra de 100g e come apenas 2g ? Em geral, vai a barra inteira (uma ou mais). O cara acreditou estar comendo "zero açúcar", e lá se foram 15, 30, 45 gramas.
E nisso tudo, lembre-se de que o açúcar, embora eternamente abusado, tem um limite máximo de ingestão diária recomendado pela OMS (10% das calorias diárias – ou 50g/dia, considerando uma dieta de 2000kcal).
O que fazer no caso da gordura trans, que historicamente não tem limites máximos estabelecidos, e que surge nas embalagens como "ZERO GORDURA TRANS" ? É zero mesmo, ou tem aqueles 0.5g/porção que permitem que a fábrica afirme ser zero ?
(Só para refrescar a memória, as gorduras trans têm 3 anos para serem abolidas do mercado americano. No Brasil, não se fala sobre o assunto)
Perceba que esse caso do chocolate foi apenas ilustrativo. Mesmo os chocolates "gourmet", que se orgulham de estampar "75% cacau" ou "85% cacau" em seus rótulos, não afirmam que não contêm açúcar - o que nos leva ao segundo ponto: o "açúcar adicionado".
Açúcar adicionado
O açúcar adicionado é aquele que a indústria acrescenta aos alimentos, tornando-os mais palatáveis (e viciantes, diga-se de passagem). É a ele que a OMS se refere como "no máximo 10% do valor calórico total por dia", conforme citei mais acima. Quando um produto quer ter a pecha de "sem açúcar adicionado", especialmente se for suco, ele não tem como fugir: não pode embutir mais "nenhum" açúcar no produto (sobre esse "nenhum", eu falo um pouco mais abaixo), além daquele naturalmente presente nos ingredientes.
Nesse caso, a solução é apelar para as "poucas calorias". Um suco de abacaxi de caixinha, light, sem adição de açúcar, tem 34g de açúcar por litro (6.8g por porção de 200ml).
6.8g de açúcar /porção x 5 porções/litro = 34g de açúcar por litro
Todo o açúcar aqui veio do abacaxi!
Esse produto foi feito sem açúcar. Não quer dizer que não tenha açúcar. Na verdade tem, e MUITO. Em 1 copo, você já tomou mais que 10% do valor máximo que a OMS te recomenda. E quem é que toma só 1 copo ?
Outra coisa "legal" que a ANVISA permite é que ingredientes como maltodextrina, amido e fécula (todos carboidratos) não sejam listados como açúcar.
A maltodextrina é um subproduto da digestão do amido, e no frigir dos ovos é composta por moléculas de glicose.
Vejamos então a definição de fécula.
No Brasil a legislação federal (Resolução CNNPA n. 12, de 1978) estabelece que a comercialização de produtos nomeados como fécula (fécula de mandioca, fécula de batata, entre outros) devem se referir ao produto amiláceo extraído das partes subterrâneas comestíveis dos vegetais (tubérculos,raízes e rizomas). Por outro lado, os mesmo produtos amiláceos quando extraídos das partes aéreas comestíveis dos vegetais (sementes, etc) devem ser nomeados como amido, tal como amido de milho e amido de arroz.
Ou seja, fécula é amido. Pode ter um percentual razoável de amido resistente, pode ser menos digestível quando comida crua, mas continua sendo amido.
E o amido, como qualquer um que já tenha se preocupado em ler um pouco sobre o assunto, nada mais é que um mundaréu de glicoses juntas, unidas por pontes glicosídicas. O resultado da digestão de amido é glicose, ponto.
Vejamos então o que a ANVISA nos diz sobre esses três carboidratos (grifos meus):
Os ingredientes maltodextrina, amido e fécula, embora contenham naturalmente pequenas quantidades de açúcares, não são entendidos como alimentos com açúcares. Portanto, no caso citado não é necessário declará-los na lista de ingredientes com a nota de esclarecimento. A presença da nota de esclarecimento seria obrigatória se o produto com a alegação de sem açúcares tivesse em sua composição ingredientes reconhecidos pela presença de açúcares, tais como frutas ou mel.
Por outro lado, esse mesmo documento versa também sobre os mono e dissacarídeos que são considerados "açúcar adicionado":
(...) o produto não pode conter açúcares adicionados. Isso significa que o produto não pode ter adição de ingredientes compostos por mono ou dissacarídeos, tais como: sacarose, lactose, glicose, xarope de glicose, açúcar invertido etc
O corpo, esse democrata
Confesso que deu nó na cabeça. Moléculas pequenas, compostas de 1 ou 2 glicoses, são considerados açúcares e precisam ser declaradas assim. Mas moléculas grandes, feitas (quase que) exclusivamente de glicose (açúcar) podem ser adicionadas a um alimento e não precisam ser declaradas como açúcar.
Bacana, né ?
Sim, eu sei que as terminologias "açúcar" e "amido" têm conotações diferentes dentro da bioquímica. Mas uma vez dentro corpo, quebradinhas em monossacarídeos (glicose, frutose e galactose), a origem delas deixa de fazer diferença... O seu corpo NÃO sabe:
- Se a molécula de glicose que caiu na circulação veio do açúcar natural do abacaxi, do açúcar adicionado no chocolate, da lactose do leite ou da maltodextrina do seu shake
- Se a frutose veio diretamente da maçã ou da quebra da sacarose contida no Sonho de Valsa
- Se a galactose veio do iogurte integral ou da lactose usada para estabilizar aquela gostosa massa da pizza
Então, camarada... Muita atenção aos "zeros". O valor de zero não é exatamente definido, quando se trata de bioquímica recheada de política e economia.
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