O roubo da história: Orwell, Stalin, Keys

Em sua sombria ficção "1984", George Orwell escreveu:

"Quem controla o passado, controla o futuro. E quem controla o presente, controla o passado"

No livro, a frase se refere à maneira como um governo exerce a sua dominação ao reescrever constantemente a história. Sempre que uma situação muda na atualidade, os livros e registros antigos são revisados de maneira que o passado sempre corrobora o presente. Ao fazer isso, os governantes conseguem se manter no controle ad aeternum.

A inspiração para o Big Brother, que personifica o poder no livro, veio diretamente da história real. O camarada Josef Stalin, estadista soviético, ditador e assassino em massa nas horas vagas (que eram muitas!), era mestre na arte de reescrever a história. Nas fotos abaixo, perceba como Nikolai Yezhov "desaparece"...

Jogo dos Sete Erros!


Yezhov, oficial da NKVD (polícia secreta soviética) foi o braço direito do bigodudo durante algum tempo, mas então tornou-se inconveniente - e sendo inconveniente, desapareceu. Do presente e do passado...

Mas o que isso tem a ver com o assunto desse blog ?

Você já percebeu como as dietas da moda vão e vem? Ou como aparecem estudos alimentares contraditórios o tempo inteiro? Em uma semana, comer proteínas causa câncer! Logo depois, não se fala mais no assunto. A água de berinjela reduz o colesterol! A chia causa emagrecimento! O limão congelado e ralado reduz a glicemia! Dieta da banana! 

A mídia vive de divulgar, sem críticas consistentes, notícias sobre alimentação que conflitam entre si. Assim, vai gerando falácias que impedem o público de ter informação de qualidade - e ainda pior, faz com que esqueçamos do passado! O conhecimento médico sobre dietas, que vigorou até meados dos anos 1960, foi apagado.

Quando William Banting lançou seu livro de dietas em 1863, o mesmo tornou-se uma febre na Inglaterra (ao ponto de "banting" tornar-se sinônimo de "dieta"). Basicamente, ele pregava a abstinência de pães, doces, massas e cerveja como maneira eficaz de perder peso e obter saúde. Testando em si mesmo, Banting livrou-se de mais de 30kg, de dores nos joelhos, voltou a dormir com facilidade e passou a ter energia sobrando no seu dia-a-dia. Isso te lembra alguma coisa ? Talvez dieta paleo e seus efeitos ?

Até os anos 60, o padrão de dieta receitado para emagrecimento era basicamente low-carb. Mas isso foi apagado, reescrito e ensinado a gerações e mais gerações de profissionais da saúde - que por sua vez, ensinaram e ensinam às pessoas que "saudável é comer 60% de carboidratos por dia, divididos em 6 refeições". E fazer bastante exercício, é claro - pois assim é que se controla o peso. 

Só que não.

Contra fatos, não há argumentos... A epidemia de obesidade e diabetes começou juntamente com essas novas recomendações, e o combate não parece estar sendo eficaz. A cada nova edição do Atlas da Diabetes feito pela IDF (International Diabetes Federation), as previsões feitas no ano anterior são vergonhosamente batidas. O volume total de diabéticos no mundo em 2030 seria de 368 milhões, conforme previsão feita pela IDF em 2000. Mas pela estatística de 2013, já temos 381 milhões apenas entre 20 e 79 anos de idade - e é preciso lembrar que a diabetes infantil está em ascensão...

Perceba a soma dos valores: 381.834.000 de diabéticos no mundo em 2013


As teorias de Ancel Keys (veja aqui e aqui), ao ganharem aceitação, deram início a uma espiral de doença crônica tal como a humanidade nunca havia visto antes. Eu chamo de "O roubo da história". Nos fizeram esquecer do nosso passado, de como comíamos antes de a indústria transformar a comida em negócio.

Recentemente, lendo as "Estratégias para o cuidado da pessoa com doença crônica Diabetes Mellitus", esbarrei com o seguinte trecho:

As recomendações nutricionais prescritas para esse fim podem restringir calorias ou reduzir carboidratos, já que o benefício observado é semelhante entre as diferentes dietas. Dietas com baixo teor de carboidratos têm benefício no controle glicêmico, na perda de peso (mesmo sem focar na restrição calórica), na redução do uso de medicações e nos fatores de risco cardiovascular como aumento do HDL-colesterol, quando comparadas com dietas tradicionais. Dietas com baixo índice glicêmico também apresentam benefício no controle glicêmico (redução de 0,43% na HbA1c) e níveis de HDL-colesterol. A ingestão de gordura saturada deve ser <7% do valor energético total (VET) e a de gordura trans deve ser mínima. Entretanto, perfil lipídico, função renal e consumo proteico no caso de nefropatias precisam ser monitorados.

Olha que interessante! O caderno de atenção básica publicado pelo Ministério da Saúde reconhece TODOS os benefícios de uma dieta low-carb, e inclusive alerta para os riscos envolvidos em caso de nefropatia preexistente.

Parece bom demais para ser verdade ? E é mesmo. Poucas páginas depois, encontramos o trecho abaixo (grifo meu).

Há controvérsias na literatura quanto à proporção de CHO da dieta. A recomendação diária é 50% – 60% do valor energético total (VET) idêntica à da população em geral. Não são recomendadas dietas low carb, isto é, com menos de 130g de carboidratos/dia devido à falta de evidências científicas que garantam sua segurança e eficácia, além do impacto na função renal, perfil lipídico, risco de hipoglicemia e do seu efeito ter sido demonstrado apenas em curto prazo.

Opa, vamos entender isso! Basicamente, a soma dos dois trechos é: "Dietas de baixo carboidrato são no mínimo tão boas quanto as de restrição calórica com pouca gordura. Em alguns casos, elas são ainda melhores por isso, isso e isso. Mas não podemos recomendar porque não há estudos que garantam a sua segurança".

Confesso que fiquei confuso.

Não seria mais lógico remover o primeiro trecho ? Qual é o ponto de se elogiar uma dieta que não deve ser usada ? E o impacto na função renal ? Não era preocupante apenas em casos de nefropatia preexistente ?

Continuando - ainda confuso - a ler, chego ao trecho abaixo (novamente, grifo meu).

A utilização de dietas com baixo IG [Índice Glicêmico] pode servir como estratégia complementar no plano alimentar para o diabético, principalmente em períodos de hiperglicemias. A diminuição da carga glicêmica da dieta mostrou-se um método efetivo para perda de peso e melhoria do perfil lipídico.

Então uma dieta com baixo índice glicêmico (o que é bastante comum quando se pratica LCHF) é um método efetivo para perda de peso e melhoria do perfil lipídico ? Mas no trecho imediatamente anterior, não havia sido dito que não há estudos suficientes sobre o impacto no perfil lipídico ?

É de se estranhar mesmo, mas não tanto quanto as Diretrizes Alimentares Americanas de 1977 e de 2010. Nelas, encontro as passagens abaixo (dicas do excelente artigo da Hite et al. (que ainda vou traduzir!)):

O uso de dietas ricas em carboidratos pelo homem civilizado tem uma base histórica, é economicamente sólido e dá indícios claros de causar menos, e não mais doenças, especialmente no âmbito de doença cardíaca coronariana e hiperlipidemia (EUA, 1977).
 Dietas saudáveis são ricas em carboidratos (EUA, 2010).

Ao mesmo tempo, dentro da seção "Necessidade de estudos futuros" (EUA, 2010), lê-se:

Desenvolver e validar métodos de se avaliar os carboidratos. Explorar e validar biomarcadores novos e emergentes para esclarecer mecanismos e explicações alternativos para efeitos observados dos carboidratos sobre a saúde.

Motivo: estudos dos resultados de carboidratos e saúde em um nível de macronutrientes são frequentemente inconsistentes ou ambíguos devido a métodos pouco precisos e a categorizações e definições variáveis dos alimentos. A ciência não pode progredir sem mais avanços tanto na metodologia quanto na teoria.

Acredito que o mais sensato, dado que os efeitos do consumo de carboidratos ainda são pouco estudados, não é recomendá-los como "dieta saudável". Certo ?

Quem controla o nosso presente, passado e futuro ? Serão as mesmas pessoas capazes de se guiar por textos contraditórios e recomendar hábitos alimentares "saudáveis" que parecem estar nos matando aos milhares por ano ?

Somente em 2013, ao menos 124.687 mortes estiveram ligadas ao diabetes no Brasil, sendo que 51.519 mortos tinham menos de 60 anos (IDF, 2013). O número total de mortos pela doença no país em 2013 é maior que a soma de todas as mortes por arma de fogo entre 2006 e 2010 (CEBELA, 2013); é mais de 6 vezes o número de mortos pela AIDS em 2012 (UNAIDS, 2012); é mais que a soma de todas as mortes em acidentes de trânsito de 2009 a 2011 (WAISELFISZ, 2013).

Faça suas contas e não deixe mudarem o seu passado...


Referências



CEBELA - Centro Brasileiro de Estudos Latino Americanos. Mapa da violência 2013. Flacson Brasil, 2013.

EUA. Dietary Goals for the United States. Select Committee on Nutrition and Human Needs, United States Senate, 1977.

IDF. Diabetes atlas - Sixth Edition. International Diabetes Foundation, 2013.

HITE, Adele H.; FEINMAN, Richard David; GUZMAN, Gabriel E.; SATIN, Morton; SCHOENFELD, Pamela A.; WOOD, Richard J.. In the face of contradictory evidence: Report of the Dietary Guidelines for Americans Committee. Nutrition #26, 2010.

UNAIDS. HIV and AIDS estimates 2012. The Joint United Nations Programme on HIV/AIDS, 2012.

WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2013: Acidentes de Trânsito e Motocicletas. Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos, 2013.

Comentários

  1. Muito bom, gostei muito. Ninguém sem incomoda em ser coerente, existe uma confiança prepotente na máquina de propaganda e relações publicas dos grandes grupos empresariais, e uma aposta constante na desinformação passiva do público. Mas não é impossivel quebrar todo este aparato, é um trabalho de formiguinha que precisa ser feito.

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