Proteína animal tão ruim quanto fumar ?!

Artigo traduzido por Hilton Sousa. O original está aqui.

por Zoë Harcombe

Em 04 de março de 2014, começaram a aparecer alguns artigos online. “Dietas ricas em proteína animal podem ser tão danosas à saúde quanto fumar”, disse o Guardian. O Daily Mail capturou a dimensão idade mais acuradamente com “Comer muita carne e queijo na meia idade é tão mortal quanto FUMAR”.

A origem dessas manchetes é esse artigo. O artigo completo está disponível gratuitamente.

O estudo


O estudo revisou dados de 6381 adultos com idades a partir de 50 anos (média de 65), usando os dados da saúde pública americana (NHANES III). Os participantes foram acompanhados por até 18 anos, resultando em dados de 83308 pessoas-ano.

A ingesta calórica média foi reportada como 1823 por dia (o que já sugere subestimativas), sendo 51% proveniente de carboidratos, 33% de gorduras e 16% de proteínas. A maior parte dessa ingesta de proteínas (11 dos 16%) foi reportada como proteína de origem animal.

Ao invés de dividir as pessoas em três grupos distintos, o percentual de ingesta calórica sob forma de proteína foi usado para alocar os sujeitos em um dos três grupos:

  • Alta ingesta de proteína, categorizado como mais de 20% das calorias diárias oriundas de proteínas (1146 pessoas)
  • Ingesta moderada de proteína, categorizada como 10-19% das calorias diárias oriundas de proteínas (4798 pessoas)
  • Baixa ingesta de proteína, categorizada como menos de 10% das calorias diárias oriundas de proteínas (437 pessoas)
Isso por si, já é interessante. Normalemtne os grupos são divididos de maneira que grupos iguais de pessoas fiquem em cada grupo. O agrupamento mais comumente usado é o de tercis (3 grupos), quartis (4 grupos) ou quintis (5 grupos). Se os sujeitos foram divididos em tercis, 2127 pessoas deveriam estar em cada um dos 3 grupos e a percentagem de proteína deveria ter sido o resultado - e não a entrada (ex: nós podemos descobrir que 1/3 das pessoas que tiveram ingesta protéica menor que 14% das calorias; 1/3 teve ingesta entre 14-18% e o teril final ter ingesta acima de 18%). O método usado aqui não é errado, mas não estamos comparando grupos iguais e isso vai resultar numa diferença quando o risco relativo entrar em discussão - como vai entrar.

Associação entre proteína e mortalidade


Essa é uma citação direta do artigo (ênfase minha): "Usando os Modelos de Cox para Ameaças Proporcionais, descobrimos que consumo alto e moderado de proteínas estavam positivamente associados com mortalidade ligada à diabetes, mas não associada à mortalidade por todas as causas, doenças cardiovasculares ou câncer quando os sujeitos em todas as idades acima de 50 anos foram considerados".

Isto é, quando olhamos para as 6381 pessoas acima de 50, não havia sequer uma associação entre ingesta de proteína e mortalidade por qualquer causa, ou por doença cardiovascular, ou por câncer.

Havia uma relação entre mortalidade por diabetes e ingesta protéica, mas os números foram tão pequenos (1 morte por diabetes em 1 grupo) que isto não foi considerado importante.

E essa poderia ter sido a manchete - "Não há associação entre ingesta de proteína e mortalidade" - mas então não haveria manchete.

Após descobrir nenhuma associação geral, os pesquisadores apontaram um padrão com a idade e dividiram a informação entre participantes com idades entre 50-65 e participantes acima de 65. Eles então descobriram (citação direta, novamente): "Entre aqueles com idade entre 50 e 65, níveis mais altos de ingesta de proteína estavam ligados a riscos significantemente aumentados de mortalidade por qualquer causa e por câncer. Nessa faixa etária, sujeitos no grupo de alta ingesta protéica tiveram um aumento de 74% no seu risco relativo de mortalidade por qualquer causa (HR: 1.74; 95% CI: 1.02–2.97) e tinham mais de quatro vezes mais chances de morrer de câncer (HR: 4.33; 95% CI: 1.96–9.56) quando comparados aos do grupo com baixa ingesta de proteína.”

Isso significa que havia um resultado igual e oposto para o grupo acima de 65. Se todos os participantes juntos não mostraram associação e uma seção do grupo é então separada para mostrar associação positiva, a seção remanescente precisa ter uma associação negativa. Essa é a lei das médias. É claro então que as 3342 pessoas acima de 65 anos eram muito menos propensas a morrerem de qualquer causa se estivessem nos grupos de alta ou média proteína. Mortalidade por câncer para o grupo de baixa proteína também foi 2,5 vezes maior que a mortalidade por câncer no grupo de alta proteína.

Mortalidade por doença cardiovascular (DCV) foi aproximadamente a mesma para os grupos de alta e baixa proteína, considerando a faixa etária 50-65 anos. A mortalidade por DCV foi então muito menor para os grupos de média proteína do que para o grupo de baixa proteína, nessa faixa etária. Para os acima de 65 anos, o grupo de alta ingesta protéica foi o melhor no que diz respeito a mortalidade por qualquer causa, câncer e DCV.

O fato de que as manchetes escolhem alardear "proteína vai te matar na meia-idade" ao invés de "proteína vai te salvar na velhice" apenas destaca a falta de coerência e as tendências.

Os erros de sempre


Há dois fatos que cada estudo falha em esclarecer:

1) Associação não implica causalidade (só porque observamos que as pessoas cantam no banho, não significa que o banho cause mais vontade de cantar do que cantar cause banhos); e

2) Risco relativo é uma medida pobre quando o risco absoluto pode ser avaliado. (Você pode dobrar a sua chance de vencer a loteria comprando 2 bilhestes. Sua chance relativa é duas vezes maior que antes. A sua chance absoluta era 1 em 14 milhões e agora é 1 em 7 milhões. Você não vai ganhar na loteria!)

O estudo tem números de risco absoluto e devia compartilhá-los. Pode haver 4 mortes em 1000 pessoas por câncer no grupo de alta proteína e 1 morte por câncer no grupo de baixa proteína. Isso descreve a manchete "quatro vezes mais chances de morrer de câncer", mas é enormemente diferente de ter 1 chance em 1000 de morrer, versus 1 chance em 250 - nenhuma das quais vai te fazer perder sono à noite. Eu mandei um email para o Dr. Longo, pedindo pelos dados crus nas taxas de mortalidade para ver qual é o risco absoluto. (E lembre-se - isso diz respeito apenas ao grupo de 50-65 anos, e vai ser o oposto no grupo acima de 65).

Proteína x Proteína animal


O estudo afirma ter ajustado para proteína em geral versus proteína animal, para concluir que a proteína animal é o fator danoso, e não a proteína em si. Me chamem de desconfiada, mas eu sempre procuro conflitos de interesse e o pesquisador-chefe, Dr. Longo, já declarou seus interesses na L-Nutra (na verdade, ele é o fundador) - uma empresa que fabrica o ProLon™ – um produto inteiramente baseado em plantas, projetado para substituir refeições.

Então o estudo quer nos fazer acreditar que a proteína animal aumenta a mortalidade por câncer em pessoas entre 50 e 65 anos, mas que magicamente reverte essa relação aos 65 de maneira que é melhor que você esteja comendo muita proteína nessa idade, ou morrer feito mosca. Isso simplesmente não faz sentido.

Eu poderia entrar numa discussão de qualidade da proteína animal (carne, ovos e laticínios de animais alimentados com pasto) versus proteína animal processada (hamburgueres de fast food, com pães de trigo branco e ketchup, frangos produzidos em massa, iogurtes desnatados adoçados) e por aí vai, mas isso não pode explicar o motivo de a proteína animal ser alegadamente nociva antes dos 65 e benéfica depois. E falando nisso, coma produtos animais de qualidade e não coma nada processado (carne ou não), mas isso é apenas uma regra dourada de saúde. Ela não pode explicar esse estudo.

De ratos, não de homens


Os pesquisadores afastam-se do Zé e da Maria e aproximam-se do Mickey e da Minnie para tentar explicar os resultados. O Dr. Longo é bem conhecido por seus experimentos com ratos (ele era um daqueles caras que o Michael Mosley entrevistou quando fez o seu programa sobre Jejum Intermitente).

Os pesquisadores de fato experimentaram em ratos. Eles deram a ratos machos de 18 semanas uma dieta com pouca (4-7%) ou alta (18%) ingesta de proteína. (Nós não sabemos se gorduras ou carboidratos inteiraram a diferença da ingesta protéica). Eles implantaram células de melanoma nos ratos (lhes deram câncer, de fato) e então observaram para ver como o câncer progredia nos 39 dias seguintes, enquanto os ratos eram alimentados com alta ou baixa proteína. A inciência de tumores foi reportada como 100% no grupo de muita proteína e 90% no grupo de baixa proteína após 25 dias. A discussão que se seguiu centrou-se em torno de um termo que você pode se lembrar do tal programa - IGF-1 - Fator de Crescimento Similar à Insulina.

Isso poderia ter levado à manchete - "Ratos machos que recebem células câncerosas, desenvolvem câncer", mas está sendo usado como uma explicação para as observações do estudo em humanos. A hipótese divulgada é que a ingesta de proteína aumenta a IGF-1, que a IGF-1 ajuda nossos corpos a crescer e que portanto ajuda o câncer a crescer. Nós nem sequer provamos que ingesta de proteínas determina a IGF-1 em humanos, e então a hipótese cai no primeiro obstáculo. A teoria então sugere que a IGF-1 diminui com a idade. Então eles estão dizendo que a proteína após os 65 anos não impacta a IGF-1 e por conseguinte não impacta o crescimento ou o câncer ? Simplesmente ainda não faz sentido.

A reviravolta final foi que os pesquisadores não encontraram diferença significativa quando eles deram aos ratos proteína animal ou vegetal. então isso não pode justificar as manchetes condenando carne e queijo. Adicionalmente - as relações públicas da ProLon™ vão para o buraco!

O que devemos aprender disso tudo ?


  • Humanos não precisam de tanta proteína assim. Como regra geral, precisamos de aproximadamente 1g de proteína por cada kg de massa corporal. Fisiculturistas e mulheres grávidas podem se beneficiar de mais, mas não precisamod de tanto. Tendo dito isso, proteínas tem uma vantagem metabólica substancial sobre carboidratos e gorduras e podem ajudar com a perda de peso como resultado [i]. Então mais de 1g/kg de massa corporal não é um problema - desde que a ingesta venha de comida de verdade e não de shakes de mentira.
  • Proteína está virtualmente em toda comida provida pela natureza (óleos e sacarose sendo as únicas exceções e eles não são realmente comida). A natureza provê combinações de gordura/proteína - carne, peixe, ovos, laticínios - e combinações de carboidrato/proteína - grãos, leguminosas, frutas, verduras. Raramente as comidas tem gordura/proteína e carboidaratos em boa media (oleaginosas e sementes sendo as exceções). Por que a natureza colocaria proteína em tudo, se o objetivo da proteína é nos matar ?
  • Este estudo fez uma observação interessante e é só. Ele não apresentou uma explicação plausível. Em relação à comparação com o tabagismo - é uma jogada editorial para ganhar as manchetes - não  é apropriada a pesquisadores que quererm ser levados a sério. Fumar apresenta um risco absoluto - providencie os mesmos números para o meu jantar de carne alimentada com pasto, assada, se é isso que você está afirmando.
  • Você deveria abandonar a carne e os laticínios como resultado disso ? Não, a menos que você queira se privar de gorduras essenciais, proteínas e quantidades inestimáveis de vitaminas e minerais. A regra de ouro da dieta permanece inalterada: coma comida de verdade! Isso significa carne, ovos e laticínios provenientes de animais criados com pasto; peixes; oleaginosas e sementes; verduras e frutas da estação. Só aprecie grãos integrais e vegetais ricos em amido se você tiver peso normal - limite essas comidas engordativas caso contrário. Vinho tinto e chocolate amargo, e o que mais pode um homem querer ? Ou rato!

PS: acabei de pensar numa coisa, poucas horas depois de ter postado o artigo. Onde estará a vasta maioria de mortes entre as 6381 pessoas que tinham mais de 50 anos quando o estudo começou ? No grupo 50-65 ou no grupo 65+ ? No segundo, é claro. Então, independente de não termos um mecanismo plausível, a "vantagem" da proteína animal estará agradecidamente no grupo que mais se beneficiará! Continuo esperando os dados crus...


[i] Eric Jequier, do Instituto de Fisiologia da Universidade de Lausanne, Suíça, descobriu que o efeito térmico dos nutrientes (termogênese) é aproxiamdamente 6-8% para os carboidratos, 2-3% para as gorduras e 25-30% para as proteínas. Isso é, aproximadametne 6-8% das calorias consumidas sob forma de carboidratos são usadas na digestão do próprio carboidrato e em torná-lo combustível disponível para ser usado pelo corpo. Em contraste, 25-30% das calorias consumidas sob forma de proteína são usados na digestão das próprias proteínas e em torná-las combustível para o corpo. (Eric Jequier, “Caminhos para a obesidade”, Jornal Internacional da Obesidade, (2002).)

Comentários

  1. Hilton, veja esse outro artigo muito interessante sobre o mesmo assunto

    http://examine.com/blog/high-protein-diets-linked-to-cancer-should-you-be-concerned/

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