As origens (mais profundas) das diretrizes alimentares

por Maurício Del Bianco e Liss Bischoff

Muito antes de Ancel Keys e sua “diet-heart hypothesis”, já existia a recomendação de uma dieta baseada em grãos e cereais. Ela remonta ao século XIX e é fundamentalmente vegetariana

Durante todo este texto, o termo “vegetariano” pode ser entendido como “vegano” na maior parte das vezes.

GARY FETTKE, TIM NOAKES E A PERSEGUIÇÃO ÀS VOZES DISSIDENTES


Gary Fettke é um médico australiano especializado em cirurgia ortopédica. De modo similar ao que aconteceu com o Professor Tim Noakes na África do Sul, ele foi investigado e “silenciado” pela “Australian Health Practitioner Regulation Agency” (AHPRA) por dar recomendações nutricionais a seus pacientes, especialmente no que diz respeito a prevenir ou lidar com condições como câncer e diabetes. Este “silenciamento” consiste na proibição a qualquer menção a estes tópicos em mídias e redes sociais, bem como diretamente a seus pacientes. Curiosamente, isto vale apenas para o território australiano. No vídeo de sua palestra nos Estados Unidos, cujo link está disponível abaixo, e também em vários vídeos relacionados, Gary resume sua história (que inclui ter sido uma criança obesa e um tumor cerebral que requereu cirurgia, quimioterapia e radioterapia) e os resultados de sua pesquisa a respeito da origem das diretrizes alimentares e dos interesses que as regem. Sua esposa, Belinda, após sua condenação, se pronuncia por ele dentro da Austrália e nas mídias sociais.

Gary Fettke e Tim Noakes: silenciados



Abaixo, o vídeo com a íntegra da apresentação de Gary:


Declarando o próprio conflito de interesse


Para manter a coerência de suas afirmações, Gary faz questão de, primeiramente, dizer qual é o seu viés e o seu conflito de interesse: ele é um entusiasta da comida de verdade, recomenda alimentos “frescos, produzidos local e sazonalmente” e utiliza as mesmas palavras de Greg Glassman, fundador da Crossfit Inc., patrocinadora do evento que o contratou para sua palestra: “Coma carnes e vegetais, oleaginosas e sementes, um pouco de fruta, muito pouco amido e nada de açúcar.”. Também faz uma brincadeira com alguns prefixos para dizer que é um vegetariano que também consome carne, leite, ovos, peixes e aves. Ao declarar seu viés e fornecer o nome de quem o contratou para falar em público na ocasião, Gary se coloca em uma posição mais adequada para fazer sua principal crítica: as pessoas, instituições e publicações que recomendam as diretrizes alimentares atuais, em sua grande maioria, omitem seus conflitos de interesse e, desta forma, trapaceiam (“they cheat”, nas palavras dele). Tornam sujo um jogo que deveria ser limpo. Afinal, saber que, por exemplo, a American Heart Association é patrocinada pela indústria dos óleos vegetais à base de sementes certamente faz (muita!) diferença quando consideramos sua recomendação para consumirmos óleos vegetais e fugirmos da gordura saturada. Idealmente, qualquer pessoa que vem a público deveria estar vestindo um “chapéu” com o nome da instituição que representa, a camisa do time para o qual ela joga (como por exemplo, uma pessoa que quer convencer que o consumo de açúcar não é prejudicial para a saúde ostentar um belo boné com a marca de uma empresa que fabrica refrigerantes estampada nele).

Declarar conflitos = jogar dentro das regras



Não é novidade para muitos leitores que, no que diz respeito à nutrição, este jogo é quase sempre sujo e as partes que lançam argumentos na discussão trapaceiam, pelo óbvio motivo de que seriam desacreditadas se simplesmente colocassem às claras seus conflitos de interesse. Mas a novidade maior vem quando, ao expor sua pesquisa, Gary mostra o quanto esta prática é antiga e como a visão prevalente dentro desta discussão conseguiu, através de “propaganda”, “educação geracional”, “evangelismo médico” e do controle de diversos tipos de mídia e publicações, se consolidar. Assim, ele adiciona uma peça extremamente esclarecedora neste quebra-cabeças.

A PESQUISA DO DR. GARY FETTKE


Durante o curso das investigações e audiências, Gary observou que, de modo similar ao caso do Prof. Tim Noakes, um nome importante dentre “experts da nutrição” apareceu espontaneamente e se envolveu com o comitê de médicos que analisava seu caso. Sendo apenas um cirurgião ortopédico que atende uma pequena comunidade rural, não pôde deixar de achar um tanto quanto estranho e desproporcional o surgimento de figuras deste naipe. Não precisou pesquisar muito para notar a existência de alguns padrões: (1) esses “experts” possuem estreitas relações com instituições e empresas ligadas à indústria alimentícia; (2) a maioria deles são vegetarianos e fazem recomendações vegetarianas. Este segundo item adiciona um elemento a mais na questão, sobre o qual falaremos mais adiante. Implica sair da esfera dos interesses financeiros e incluir também um componente ideológico.

O “expert nutricional” que surgiu no caso de Gary é um notório defensor do vegetarianismo, ligado à indústria alimentícia australiana, majoritariamente especializada no processamento de grãos e cereais. Sua esposa possui relações estreitas com uma associação “científica” internacional, que por sua vez é ligada a outras multinacionais alimentícias. Gary ainda afirma que, curiosamente, este “expert” possui seu próprio periódico, através do qual ele e a esposa editam, revisam, publicam e fazem referência a seus próprios artigos (referência cruzada), declarando NÃO haver nenhum conflito de interesse em suas publicações (!). Gary também cita os “experts” envolvidos no caso do Professor Tim Noakes, que possuem estreitas relações com os “experts” australianos e com institutos internacionais que, adicionando a palavra “science” a seus nomes, também mantêm envolvimento com grandes multinacionais alimentícias.

Até aqui, sem muitas novidades quanto ao “modus operandi” da coisa. “Autoridades” ligadas à indústria recomendam o consumo do que a indústria produz e tentam silenciar vozes dissidentes, além de financiar, de acordo com seus interesses, estudos supostamente “científicos” para dar suporte a essas recomendações. Vamos agora ao componente ideológico.

“Seguir o dinheiro” esclarece muita coisa, mas não tudo


Ver as relações entre “institutos científicos” que dão recomendações nutricionais e grandes empresas alimentícias de fato nos faz entender muito a respeito dos problemas que envolvem as diretrizes alimentares. Mas Gary afirma que existe um componente mais profundo, que vai além dos interesses financeiros. Ao analisar uma publicação de 1988, que teve grande influência na modificação das recomendações nutricionais (na figura abaixo, a pirâmide alimentar de 1992) até os dias de hoje e considerou as dietas vegetarianas “seguras desde que bem planejadas”, Gary mostra que os autores, editores e revisores eram, majoritariamente,vegetarianos e membros da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Esta publicação estava no periódico de uma instituição chamada American Dietetic Association, e teve importância crucial para que, após gradativo “desestímulo” ao longo das décadas, se excluísse de fato a carne e os produtos animais das recomendações alimentares atuais, conforme veremos mais adiante.

A pirâmide alimentar de 1992


A fundação da “American Dietetics Association” em 1917


Eu, particularmente, nunca tinha ouvido falar a respeito de uma associação americana “da dieta”. Para minha surpresa, ela existe (recentemente foi renomeada como “Academy of Nutrition and Dietetics”) e, segundo a apresentação do Dr. Gary Fettke, já era dirigida por interesses da indústria e pela ideologia vegetariana desde sua criação, como veremos abaixo. Vemos com certa frequência algumas “pérolas” disparadas por essas associações, como os últimos pronunciamentos da American Heart Association sobre o óleo de coco ou a famigerada receita de ‘arroz con leche’ postada no site da American Diabetes Association em 2016 (o vídeo, patrocinado por uma grande farmacêutica, continha instruções para uma receita que inclui, entre vários ingredientes no mínimo controversos para diabéticos, leite condensado!). Esta receita, inclusive, foi retirada do ar alguns dias depois, tamanha a repercussão negativa que causou.

Ainda que, para muitos, não seja nenhuma novidade que essas instituições sejam patrocinadas pelas indústrias alimentícia e farmacêutica e atuem no sentido de atender a seus interesses, elas ainda parecem manter um certo verniz de autoridade e prestígio, causando burburinho a cada declaração e, infelizmente, ainda confundindo a cabeça de muitas pessoas. No caso da Academy of Nutrition and Dietetics, no entanto, qualquer simples busca no Google informa que esta associação é marcada por certo obscurantismo e por muitas polêmicas e questionamentos a respeito de suas ligações com grandes empresas alimentícias, notórias patrocinadoras de seus congressos e eventos. Seria por conta desses dados e por um certo “desprestígio” que se ouve falar menos a respeito dessa instituição em particular? Talvez. Faz algum sentido. Ainda assim, essa tal “Associação Americana Da Dieta” já existe há 100 anos e a principal articuladora de sua fundação, Lenna F. Cooper, é uma figura muito interessante dentro deste contexto e uma das peças chave neste quebra-cabeças.

A fundação da American Dietetics Association em 1917



Abaixo, alguns links complementares sobre a instituição e sua história


Lenna Francis Cooper, John H. Kellog e a cidade de Battle Creek


Criada na cidade de Battle Creek, no estado de Michigan, Lenna F. Cooper foi a principal responsável pela fundação da American Dietetics Association em 1917, tendo sido também presidente da mesma alguns anos depois. Tornou-se uma “autoridade” no campo da nutrição e foi consultada por várias instituições, em sua maioria hospitais e casas de repouso, além do exército e também o governo americano. Era apadrinhada por John Harvey Kellog e sua esposa, e com eles trabalhou por muitos anos. Vegetariana, orientada por donos de empresas de cereais e praticante dos princípios da Igreja Adventista do Sétimo Dia (assim como Kellog e sua esposa), a ela é atribuída a frase “o café da manhã é a refeição mais importante do dia”. Lenna também escreveu vários livros-texto para cursos de enfermagem e nutrição ao redor do mundo e, nas palavras de Gary, foi “a voz da nutrição durante décadas”. Desenvolveu, juntamente com seus pares, várias receitas que buscavam alternativas à proteína animal, utilizando nozes, castanhas, amendoim, trigo, soja e outros cereais. Também a eles é atribuída a criação do “corn flake”, o famoso floco laminado de milho, muito conhecido e massivamente divulgado como opção saudável para o café da manhã.

Estes dados são de fato estarrecedores: desde a fundação da primeira de várias associações que passariam a exercer forte influência sobre as escolhas alimentares das pessoas (e posteriormente replicadas em vários países ao redor do mundo, ao longo do último século), a indústria alimentícia e a ideologia vegetariana já estavam presentes(como diz Gary, “since the very beginning”) e foram ganhando, ao longo do tempo, cada vez mais poder e influência. Não é de se espantar, portanto, que várias opiniões parecem ser, entre quase todos os nutricionistas, consensos generalizados (como por exemplo, a ideia de que “grãos são essenciais e indispensáveis em uma alimentação saudável” – há quem não concorde: veja aqui, aqui e aqui), arraigados e revestidos de um “todo mundo sempre soube disso!”. Gary chama este fenômeno de “educação geracional”, sobre o qual falaremos adiante.

Aqui, um resumo biográfico de Lenna Cooper no “Michigan Women’s Hall Of Fame”: 

Lenna Frances Cooper (esq.) e John Harvey Kellog (dir.)

A cidade de Battle Creek, além de abrigar o hospital comandado por John Kellog, Lenna Cooper e outros colegas, possui outro dado interessante em sua história: abrigava também, no início dos anos 1900, cerca de 100 fábricas de cereais à base de grãos, que foram com o tempo se fundindo. Gary afirma que estas corporações foram as primeiras a praticarem “marketing indireto” (“product placement”, em inglês), através do qual produtos são promovidos dentro de produções audiovisuais. Como grande parte do alvo dos anúncios de cereais matinais eram (e ainda são) crianças, desenhos animados como Os Flintstones e várias produções da Disney passaram a mostrar seus personagens tecendo elogios a vários desses produtos.

Essas fábricas também pertenciam, em sua maioria, a membros da Igreja Adventista do Sétimo Dia, próximo tópico desta discussão.

Ellen Gould White e a fundação da Igreja Adventista do Sétimo Dia


Ellen Gould White (EGW), seu marido e alguns pares fundaram em 1863, também na cidade de Battle Creek, a Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD). Influenciada pelo Movimento da Temperança do início do século XIX (que pregava, principalmente, abstinência de álcool e tabaco e a prática de exercícios físicos) e por visões que alega terem começado quando tinha 17 anos, Ellen tinha ideias particularmente interessantes com relação ao consumo de carnes (principalmente a carne vermelha): ela afirmava que comer carne causa câncer e que o consumo de carne torna o indivíduo violento, corrupto e sedento por sangue. Ela ainda afirmava que “grãos, frutas, nozes e vegetais constituem a dieta que o Criador escolheu para nós”. Também estabeleceu os princípios “missionários” da religião, os quais implicam na ampla divulgação de sua mensagem e no envolvimento direto com a construção de hospitais e escolas. Chama muito a atenção, neste último link, o termo “Medical Missionary”. Observe também o termo “animal food”, utilizado muitas vezes ao longo dos textos.

Ellen Gould White: visões de um mundo educado para o vegetarianismo


A partir do momento em que tomamos conhecimento das origens mais profundas do pensamento vegetariano (que se fundem com o próprio Movimento da Temperança e com as transformações provocadas pela Revolução Industrial, a partir da segunda metade do século XVIII), não fica difícil juntar as peças do quebra-cabeça que foram apresentadas até agora. Basicamente, temos até hoje orientações nutricionais fortemente influenciadas por ideias que não foram baseadas em ciência e sim em visões e ideologia. Aí é que começa nosso grande problema, como veremos a seguir. E este problema se complica significativamente quando os seguidores destas crenças, tendo adquirido influência educacional e política, resolveram que era necessário “provar cientificamente” as visões de EGW.

PROPAGANDA, EDUCAÇÃO GERACIONAL, EVANGELISMO MÉDICO E O CONTROLE DA MÍDIA A SERVIÇO DE UMA DIETA “BASEADA EM GRÃOS E CEREAIS”


A definição de propaganda (escrita exatamente desta forma em inglês) oferecida por Gary em sua palestra descreve o termo como “qualquer informação enviesada, de natureza enganadora, usada para se defender um ponto de vista ou causa política”. Parece se encaixar perfeitamente no que veremos a seguir.

Educação geracional (em inglês, “generational education”), segundo ele, é o conhecimento transmitido de professor para aluno, de mestre para aprendiz, geração após geração (confira, mais abaixo, os tópicos sobre a influência da IASD ao longo do século XX e atualmente). Para se ter sucesso em educação geracional, diz Gary, é preciso ter controle sobre o conteúdo e sobre os meios de mídia. Um exemplo bem comum é a noção generalizada de que “carne causa câncer”. A chance de uma pessoa selecionada aleatoriamente por um repórter na rua responder que isso é óbvio e que todo mundo sempre soube disso é muito grande. Lembro-me bem de ter sido aconselhado por um médico, há algum tempo, durante uma consulta, a reduzir o consumo de carne vermelha, pois (e ele falava de maneira categórica) ela elevaria meu risco de câncer e que “estudos epidemiológicos dão suporte a esta teoria”. Bem, nós, seguidores da blogosfera paleo/primal, conhecemos muito bem os problemas com estudos epidemiológicos, que fogem do escopo deste post. Uma simples pesquisa sobre o significado do termo “healthy user bias” já mostra como é difícil sustentar esta hipótese com base em um tipo de estudo inadequado para a finalidade para a qual se propõe e passível de (muitas) manipulações. De qualquer jeito, é assustador que esta noção seja praticamente unânime, abrangendo desde leigos até profissionais da área da saúde, que a reproduzem com a mesma certeza de que o sol vai nascer amanhã.

Já a ideia de evangelismo médico (em inglês, “medical evangelism”), constitui o “braço direito” da IASD. A mensagem “é preciso educar a todos”, fortemente proclamada por EGW, se concretiza nos trabalhos missionários, centros médicos, hospitais e outras instituições, ambientes em que os médicos (“evangelizados” ou já membros da igreja) possam oferecer não somente cura física, mas também espiritual ao paciente. Isso necessariamente passa por recomendações nutricionais, uma vez que parte da crença deles seja associar o tipo de dieta a repercussões não apenas no corpo, mas também na alma.


A influência crescente da Igreja Adventista do Sétimo Dia durante o Século XX


Como (talvez o mais notável) exemplo dos que se encarregaram de “provar cientificamente” as visões de EGW, Gary menciona o médico Harry Miller, missionário da IASD e apelidado de “China Doctor”. Tendo sido um dos principais responsáveis pela reintrodução da indústria da soja nos Estados Unidos e trabalhado, ao longo da década de 1920, como médico pessoal de 3 presidentes americanos, Harry fundou 3 grandes institutos de pesquisa nos anos 1950, produzindo, a partir de então, um gigantesco número de publicações. Este enorme corpo de literatura sobre nutrição, com a missão de consolidar com evidências científicas os princípios da IASD, além de não declarar conflitos de interesse, utilizava a prática de referência cruzada (no caso, fazendo menção aos próprios artigos, publicação após publicação, ao longo de décadas, sendo um exemplo do que Gary chama de educação geracional) e teve influência decisiva para a consolidação das diretrizes nutricionais atuais.

”China Doctor”: produção “científica” enviesada

“…pesquisas científicas rigorosas irão dar suporte e não contradizer a Inspiração Divina…a Inspiração Divina previu que (os pesquisadores) obterão sucesso…o Senhor dará sabedoria aos que estudam para que se encontrem substitutos apropriados para carne, ovos e leite…” (Extraído daqui)

Gary, neste ponto da apresentação, fala categoricamente: pesquisas autointituladas “científicas” com o objetivo de “provar uma visão” são, em uma palavra, criminosas. Conforme é do conhecimento de muitos, além da omissão do conflito de interesse, é muito fácil manipular estudos epidemiológicos para se provar uma teoria. Já falamos sobre o viés do paciente bem-comportado (“healthy user bias”) acima e falaremos mais abaixo sobre referências bibliográficas confiáveis e sobre como estes procedimentos, tão comuns na nutrição, são o exemplo de tudo o que NÃO se deve fazer quando o objetivo é a obtenção de evidências científicas sólidas e não enviesadas.

Ele ainda menciona a produção de mais de 1200 papers (sob os mesmos moldes já citados: publicação e referência cruzada dos próprios artigos, nos próprios periódicos, sem declaração de conflitos de interesse) sobre longevidade entre vegetarianos e em como esta noção de que “os vegetarianos vivem mais” foi sendo enraizada: todos os participantes, autores, pesquisadores, editores e revisores desses estudos já estavam comprometidos com o resultado. No fim das contas, ele aponta que mórmons que vivem na mesma localidade (o que constitui, neste caso, um fator de confusão) também apresentavam maior longevidade e em um estudo que analisou longevidade entre vários grupos religiosos, os judeus se destacaram, dentre os participantes do estudo, como os mais longevos. Dá destaque para um estudo sobre os japoneses da ilha de Okinawa, no qual a expressiva longevidade desta população é associada a maior consumo de proteínas e gorduras animais, maior consumo de colesterol e maior consumo de leite. Outro dado que Gary destaca neste estudo é que dentre os centenários da ilha, nenhum era vegetariano.

Ilha de Okinawa: nenhum vegetariano entre centenários


Ancel Keys


A história de Ancel Keys e a condenação da gordura saturada constituem um assunto à parte, já muito discutido e com diversas especificidades. Há muito material produzido a respeito, como por exemplo pelos jornalistas Nina Teicholz e Gary Taubes. Dentro do contexto de sua pesquisa, Gary (Fettke) afirma que o termo “gordura saturada” na verdade foi sendo utilizado como uma camuflagem técnica para o termo “gordura animal”, e que vários elementos desta história foram muito bem explorados pelos vegetarianos em seu favor. Certamente, restaurantes e grandes grupos de fast-food não acharam nem um pouco ruim serem obrigados a substituir a banha de porco, por exemplo, por óleos vegetais que poderiam ser reutilizados dezenas de vezes em suas frituras. Muito mais barato e conveniente, além de cair como uma luva para a crescente indústria dos óleos vegetais e para os que queriam difundir a ideologia vegetariana. Em outras palavras, o terreno já estava (muito bem) preparado para a chegada de Ancel Keys e sua “diet-heart hypothesis”.

Ancel Keys: condenação da gordura animal


As transformações nas diretrizes alimentares, a pirâmide de 1992 e o MyPlate


Gary mostra uma sequência de várias figuras de pratos e pirâmides alimentares com as diferentes proporções entre os grupos de alimentos, desde a década de 1940, e mostra como, pouco a pouco, grãos e cereais foram ganhando espaço em detrimento de carnes, ovos, leite e derivados. Já foi mencionado acima o paper de 1988, conhecido como “the vegetarian report”, editado e revisado majoritariamente por vegetarianos membros da IASD e que viabilizou que a pirâmide de 1992 ficasse com aquela configuração, bem conhecida por todos nós, com uma base larga de grãos e cereais. Gary chama a atenção para estes eventos de 1988 e 1992, uma vez que configuram o resultado de décadas de influência dos membros da IASD (e da própria American Dietetics Association) nos círculos de “experts nutricionais”, constituindo mais um passo no incentivo ao vegetarianismo, após os conceitos serem incorporados pelos governos em suas políticas de saúde.

Com o MyPlate, mais um (e talvez o derradeiro) passo foi dado e a recomendação para o consumo de alimentos de origem animal foi sutilmente retirada.

MyPlate: “proteína”, sem especificar a fonte


A INFLUÊNCIA DA IGREJA ADVENTISTA DO SÉTIMO DIA ATUALMENTE


De acordo com os dados que Gary fornece em sua apresentação, a IASD possui nos dias de hoje mais de 19 milhões de membros e é uma das igrejas que crescem mais rapidamente no mundo. Possui mais de 81 mil igrejas em 215 países e utilizam cerca de 974 línguas diferentes para espalhar sua mensagem. Além de cerca de 70 mil empresas, possui também em torno de 750 instalações relacionadas à saúde como hospitais, clínicas, ambulatórios, casas de repouso, creches e orfanatos.

No que diz respeito à educação, os números são impressionantes: quase 8 mil instituições educacionais desde escolas primárias até universidades, totalizando quase 2 milhões de matriculados. Constitui o segundo maior corpo educacional do mundo (perde apenas para a igreja católica) e, nas palavras de Gary, “a IASD tem perpetuado a educação geracional e segue influenciando nossas crianças e jovens com sua crença voltada para grãos, cereais e o vegetarianismo”.

Com relação a veículos de mídia, os números são igualmente estarrecedores: 62 editoras e cerca de 25 mil publicações em 379 línguas, além de 853 estações de rádio, 441 estações de TV e mais de 70 mil podcasts gravados em 229 línguas (com mais de 1 bilhão de downloads).

Além das instituições de saúde e educacionais, a IASD possui 22 empresas alimentícias e fabrica mais de 3700 produtos alimentícios. Além dos lucros provenientes dessas empresas, recebem também cerca de 3,5 bilhões de dólares anualmente em doações. Gary salienta que grande parte deste dinheiro é reinvestida nas instituições já citadas.

Ele descreve também as parcerias que a IASD estabelece para promover sua evangelização. Cita brevemente (e sem dar muitos detalhes a respeito) uma parceria com a Organização Mundial de Saúde e também chama a atenção para um certo (sic) “ramo da medicina” que utiliza o nome “Medicina do Estilo de Vida” (“Lifestyle Medicine”, em inglês), além de outros nomes similares, em vários países. Segundo Gary, as recomendações deste grupo são “puro evangelismo médico”, sem nenhuma declaração de conflitos de interesse, como de costume.

“Medicina do Estilo de Vida”: = IASD


Um desastre na saúde, na economia e no meio ambiente


Gary se posiciona de maneira incisiva contra o vegetarianismo e em sua apresentação elenca alguns argumentos: a perda dos nutrientes do solo pelas monoculturas regadas a agrotóxicos e fertilizantes químicos, as deficiências nutricionais decorrentes da falta do consumo de produtos animais e, mesmo sem a exclusão deles, uma epidemia de síndrome metabólica pelo consumo exacerbado de grãos, cereais, açúcares e carboidratos refinados, o que por sua vez gera um desastre econômico para os governos no manejo da saúde pública. Ele também cita o uso de propaganda (na definição fornecida acima) para criar uma narrativa na qual o a produção de carne não é ambientalmente sustentável e rebate argumentos como, por exemplo, o da produção de metano (aqui e aqui), os números que envolvem a utilização da água e menciona a importância da devolução de matéria orgânica para o solo, que acontece naturalmente com a presença de ruminantes e de maneira diametralmente oposta ao que acontece com grandes monoculturas.

Monoculturas: um desastre ambiental



Todos esses pontos são ainda independentes da ideia de se questionar a maneira como a carne, os ovos e o leite e seus derivados são produzidos. É muito valorizado na blogosfera paleo/primal o gado criado à base de pasto e sem confinamento, por exemplo, não só por um caráter mais humanizado, mas também por conta do perfil nutricional notavelmente superior do alimento produzido nessas condições. Como produzir carne, ovos, leite e derivados é uma outra discussão que (também) não cabe neste post. No entanto, é preciso que se diga em alto e bom som: ninguém aqui é a favor da crueldade, enfatiza Gary, no momento em que levanta este assunto.

Conforme o que já foi falado acima, este post não tem a intenção de entrar a fundo nesta discussão. Discorreremos o suficiente no próximo tópico sobre a questão do respeito às escolhas individuais. Por outro lado, não é possível ignorar o impacto desta (ou de qualquer outra) prática para a saúde individual, para o ambiente e para a saúde (e cofres) públicos. Há muito material produzido a respeito, e abaixo estão alguns links para quem se interessar:


ATENÇÃO: ESTE POST NÃO É SOBRE RELIGIÃO!


Para que fique bem claro, este texto não tem o objetivo de discutir religião em nenhum aspecto. O próprio Gary faz questão de enfatizar isso, e endosso as mesmas declarações dele: “não tenho nada contra religiões ou pessoas religiosas, tenho contra pessoas que escondem seus conflitos de interesse”.

A intenção deste post, longe de debater valores e ideias no âmbito religioso, é analisar os aspectos históricos das origens do pensamento vegetariano (e também da ideia da necessidade dos grãos e cereais), a maneira com que ele se funde com os pensamentos de uma religião em particular e, principalmente, sobre as manobras, digamos, não muito honestas praticadas ao longo das últimas décadas pelos que querem propagar sua ideologia a qualquer custo. Particularmente, no que diz respeito a chamar de ciência o que não é e a esconder vieses e conflitos de interesse. Em tempos de “What the Health” e de afirmações escandalosamente falaciosas e apelativas como “um ovo é o equivalente a 5 cigarros”, é urgente que as pessoas pratiquem mais o ceticismo saudável e aprendam a questionar as fontes das informações que consomem, INDEPENDENTE DE QUALQUER RELIGIÃO OU IDEOLOGIA.

Para quem quiser adquirir noções básicas e algumas ferramentas para se avaliar a qualidade de uma publicação científica, esta série de postagens do Dr. Souto explica bem a que tipo de estudo devemos dar mais ou menos crédito, e que tipo de sustentação deve haver para se fazer qualquer afirmação, de acordo com desenho, objetivo e métodos propostos pelo estudo. Nesta mesma linha, o Dr. Peter Attia também está lançando uma série de postagens, “Studying Studies”, sobre o assunto.

Particularmente, eu não teria problema nenhum em ouvir, por exemplo, um adventista adepto do vegetarianismo que tenta me convencer que comer carne pode tornar uma pessoa violenta e que a carne pode me dar câncer. Dificilmente ele me convenceria, mas eu jamais deixaria de respeitá-lo enquanto um ser humano livre que exerce seu direito de viver como acha que deve e, respeitosamente, expor os argumentos que o levam a acreditar que devemos viver de certa maneira. Outro ponto importante é o de evitar pensar sob o viés conspiratório, enxergando má intenção em toda e qualquer atitude. Fazendo um exercício de empatia: se eu descubro ou sou convertido a uma ideologia ou estilo de vida e sua prática parece mudar minha vida positivamente, faz sentido querer que outras pessoas também usufruam dos mesmos benefícios, desde que a escolha que façam seja livre e esclarecida. Aliás, este é um componente extremamente comum em muitas outras religiões: além da própria iniciativa individual, há o estímulo constante para que se espalhe a mensagem, para converter os que não compartilham da crença. Ou mesmo pensando nos aspectos financeiros: é muito difícil ter uma noção completa do que se passava na cabeça de John Kellog ou de Lenna Cooper. Mas, dentre as possibilidades, pode ser que pensassem, por exemplo: “não seria ótimo, além de propagar minha mensagem ao mundo, poder viver disso, ser o dono da própria indústria que produz o alimento que eu acredito ser bom?”

O problema, mais uma vez (e neste momento já ultrapassando a linha do redundante), reside apenas em “esconder o jogo” e em não delimitar essa crença no território ao qual ela pertence. Deve-se deixar claro, no exemplo que citei acima, que a origem de certas ideias provém das visões que uma jovem do século XIX alegou ter. E quando seus seguidores se propuseram a sair do território da crença e entrar no da ciência, com a ‘missão’ de provar a crença, bem…nada de bom pode sair disso.

Outro ponto importante a ser lembrado é que existe um número enorme de vegetarianos que não têm relação com religião nenhuma. Praticam pelos mais variados motivos, na maior parte das vezes individuais, mas que muitas vezes passam pela questão dos animais, do ambiente, e tudo mais. Bem, é justo que tomem conhecimentoa respeito do outro lado da argumentação, já citado acima, e também das origens históricas de seu próprio hábito, para que possam fazer uma escolha ainda mais livre e esclarecida, não importa qual seja a decisão final.

Declaração de conflitos de interesse: essencial em qualquer publicação científica séria



Para finalizar, pensemos em uma situação hipotética. Logo na entrada de um hospital ou escola administrados pela IASD, uma placa enorme com os dizeres: “ESTA INSTITUIÇÃO É REGIDA PELOS PRINCÍPIOS DA IGREJA ADVENTISTA DO SÉTIMO DIA, QUE VALORIZA UMA DIETA VEGETARIANA E BASEADA EM GRÃOS, DE ACORDO COM AS VISÕES DE ELLEN G. WHITE”. Ou uma descrição destas na introdução de um programa de rádio ou podcast deles. Assim como a pessoa vestindo o boné da marca de refrigerantes mais acima, as coisas deveriam ser claras e colocadas em seu devido lugar, mas infelizmente não é o que acontece. E a cada vez que isso não acontece, e a cada vez que alguém está chamando crença ou ideologia de ciência, há distorção e manipulação para se ganhar uma argumentação. E, de acordo com a pesquisa do Dr. Gary Fettke, já tivemos o suficiente disso ao longo das últimas décadas, com consequências desastrosas para o planeta e para a saúde de inúmeras pessoas.

Maurício Del Bianco (estudante de medicina)
Liss Bischoff (autora do blog Resistência à Insulina)

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