Somente um mamífero sobrevive com uma nutrição pobre em gordura
Artigo traduzido por Rafael Araújo. O original está aqui.
por Wolverine
Quando a hiper-educação anula o instinto e o senso comum, não posso deixar de pensar nessa passagem bíblica. Os seres humanos perderam os últimos cinquenta anos tentando fazer uma ciência dos benefícios de uma dieta com pouca gordura. Embora seja contra-intuitivo para todas as tradições dietéticas, usando de muito malabarismo e acompanhada de um mantra repetitivo, ela foi embalada e vendida para pessoas inteligentes. Às vezes, podemos pensar tanto que ficamos estúpidos.
A influência da teoria de baixo teor de gordura encontrou seu caminho até para muitas dietas que afirmam ser paleolíticas. Loren Cordain e Arthur DeVany promovem a ingestão de carne, mas ainda permanecem dentro da arena da correção política, defendendo cortar fora a capa de gordura dos bifes e usar apenas os cortes mais magros de carne. A lipofobia tornou-se uma religião própria. O medo da gordura foi tão doutrinado em nossa cultura que, mesmo em face de milênios de consumo seguro e toneladas de evidências científicas em contrário, ainda nos apegamos a isso, mesmo quando defendemos o consumo de carne. Deve ser a maior lavagem cerebral jamais perpetrada na raça humana.
Mas e se lhe dissesse que os seres humanos são os únicos mamíferos na Terra que adotaram a nutrição com baixo teor de gordura? Todos os outros animais desfrutam de uma nutrição rica em gordura - e não apenas gordura, mas gordura saturada. Eu aprendi do jeito difícil o quanto a produção de gordura saturada no cólon é importante na manutenção da saúde das paredes intestinais. Esta gordura saturada é criada a partir de fibras vegetais e não de produtos de animais ingeridos.
Embora todo o meu intestino delgado tenha sido removido, exceto por uns 25cm, cerca de 60cm de intestino grosso foram poupados. Fiquei com o reto, sigmóide e alguns centímetros de cólon descendente. A ilustração abaixo mostra o total de intestinos que eu tinha antes de receber o meu transplante.
Por causa das complexidades nervosas do reto, os médicos não conseguem transplantar essa seção do cólon. Indivíduos que perdem o reto devido a Crohn, colite ulcerativa ou câncer não podem ter um cólon transplantado e devem viver o restante de suas vidas com uma ileostomia ou bolsa "J". Por isso, era importante que os médicos salvassem meu reto nativo, para que eu pudesse receber um cólon com o resto dos intestinos transplantados. Esta não foi uma tarefa fácil. As partes do cólon existentes não estavam mais conectadas, então não havia mais material passando por elas. Tudo o que eu comia saia através de um orifício feito a partir do jejuno. Como o cólon não estava sendo usado, ele se inflamou e começou a sangrar. Eu estava sofrendo de uma aflição chamada "colite de desvio" e estava perdendo tanto sangue como resultado, que precisei de transfusões a cada duas semanas. Foi muito doloroso.
A fibra indigestível dentro das fezes é devorada pelas bactérias do cólon, que então produzem um ácido graxo de cadeia curta (SCFA) chamado "butirato" (ácido butírico). No cólon humano, o butirato é absorvido pelas células do revestimento do intestino e usado para nos nutrir. O butirato é muito importante para a saúde do cólon, e sem ele, o cólon fica inflamado e, finalmente, ulcerado.
Então, como isso é relevante para o fato de que todos os mamíferos mantêm a saúde através de uma dieta rica em gordura? Primeiro, vamos dar uma olhada em um mamífero vegetariano não-ruminante como o gorila da planície ocidental. Sua dieta é composta principalmente de vegetais de folhas verdes, alguns frutos e pequena quantidade de insetos. Sua comida é pobre em carboidratos digeríveis e em gorduras, tem proteína variada e é muito rica em fibras não-digeríveis. Os macro nutrientes de um gorila, por 100 gramas de ingestão de matéria seca, parecem ser assim:
Gordura: | 0.5g |
Proteína: | 11.8g |
Carboidratos digeríveis: | 7.7g |
Fibras: | 74g |
Isso coloca a ingestão calórica de macronutrientes disponíveis em aproximadamente:
Gordura: | 5.9% |
Proteína: | 57% |
Carboidratos digeríveis: | 37.1% |
Deste modo, concluiríamos que o gorila goza de uma dieta rica em proteínas, moderada em carboidratos e de baixa gordura. Mas lembre-se do que aprendemos com a colite de desvio e como as bactérias intestinais convertem a fibra dietética em butirato – uma gordura saturada. Como o gorila tem uma proporção muito maior de cólon do que o humano, a fibra é convertida em SCFA, alterando a absorção de macronutrientes para uma relação de energia de:
kcal por 100g | % energia | |
Gordura: | 4.9 | 2.5 |
Proteína: | 47.1 | 24.3 |
Carboidratos digeríveis: | 30.6 | 15.8 |
SCFA vinda da fibra | 111 | 57.7 |
Dando ao gorila uma ingestão total de:
Gordura: | 59.8% |
Proteína: | 24.4% |
Carboidratos digeríveis: | 15.8% |
O gorila tem seis vezes a absorção colônica de um humano, o que também significa que eles têm muito mais bactérias disponíveis para digestão de celulose vegetal. A fibra, alta na dieta do gorila, é fermentada pelas bactérias colônicas, produzindo ácidos graxos de cadeia curta (SCFA). Em outras palavras, os carboidratos indigeríveis são convertidos em gorduras saturadas e absorvidos no sangue. Um ser humano comendo uma dieta similar simplesmente acabaria por defecar a maior parte, recebendo pouco benefício.
O gorila pode obter cerca de 65% de sua energia de seu intestino grosso, enquanto o humano só recebe cerca de 10% do cólon. O butirato criado no cólon humano é principalmente usado localmente pelas células do revestimento intestinal e apenas uma quantidade muito insignificante é absorvida. É por isso que um humano pode viver sem um cólon e um macaco não pode. Veja a minha postagem "O planeta que foi dos macacos!" para mais informações sobre o sexo masculino versus relação intestinal humana.
Como os carnívoros e outros animais onívoros, os seres humanos devem receber ácidos graxos através da dieta. Quando comemos uma dieta com baixo teor de gordura, não estamos simulando a dieta de gorila ou chimpanzé: estamos recebendo uma dieta baixa em gordura e muito alta em carboidratos disponíveis. O chimpanzé e o gorila recebem a maior parcela da sua gordura dietética a partir de suas bactérias intestinais, ao invés da dieta propriamente dita. Esta é provavelmente a razão pela qual os gorilas alimentados com carne em cativeiro sofrem de hipercolesterolemia e morrem. Como eles podem converter fibra em grandes quantidades de gorduras saturadas, qualquer gordura extra na dieta deles cria uma sobrecarga de lipídios séricos. (Os chimpanzés são mais onívoros do que os gorilas e saem-se melhor quando alimentados com carne em cativeiro).
Mas e os outros herbívoros? Além de ter vários estômagos com câmara, os ruminantes possuem uma câmara estomacal muito grande reservada para fermentação da matéria vegetal. Este estômago é chamado de rúmen, daí o nome ruminante.
O estômago dos ruminantes abriga bactérias que só se encontram no cólon de um ser humano. Essas bactérias convertem facilmente carboidratos indigestíveis em ácidos graxos de cadeia curta, que são absorvidos na corrente sanguínea do animal ruminante (cabras, ovelhas, gado, cervo, etc.). No nível do soro sanguíneo, esses animais estão recebendo uma carga de gordura saturada. Se os ruminantes não exigissem grandes quantidades de gorduras saturadas, não encontraríamos muito dela em seu leite. Sua prole não possui as bactérias necessárias para a conversão de fibra para SCFA quando nasce – então assim como nós, eles precisam que ela venha de sua dieta. Uma vez que tenham comido grama por um período, eles começam a cultivar as bactérias necessárias para produzir sua própria gordura a partir da fibra (o estômago humano permanece estéril por causa da alta acidez).
Uma vez que o jovem ruminante tenha estabelecido uma cultura bacteriana saudável, ele não precisam mais de gordura dietética, mas ainda recebem o mesmo alto teor de gordura que quando era bebê. De onde você acha que toda essa gordura saturada encontrada em seu leite e carne vem? Como eles podem fabricar uma porção tão grande de gordura a partir da fibra em sua dieta, qualquer gordura dietética criaria uma sobrecarga de gordura. Este é provavelmente o motivo pelo qual um animal ruminante não mostra interesse em carne ou outros alimentos gordurosos na maior parte do tempo, mesmo quando disponível.
Já percebeu a maneira como as pessoas tendem a começar a salivar com um cheiro de um assado ou o cheiro de bifes grelhados? Você não vê a mesma reação de cães de Pavlov ao brócolis no vapor, e o repolho cozido por humanos cheira como banheiro de rodoviária. Embora sejam alimentos completamente saudáveis, dificilmente são estimulantes do apetite. Nenhum herbívoro reagiria dessa maneira ao cheiro da carne assando, mas mostra o mesmo nível de excitação em relação à grama fresca.
Somos constantemente informados de que a comida que não nos excita é o que é melhor para nós. Qualquer coisa que tenha bom gosto deve ser ruim para nós. Se fôssemos uma espécie herbívora, não teríamos que obrigar as crianças a comer seus legumes. Eu crio gado e ainda estou para ver uma vaca mãe ameaçar cortar a sobremesa do bezerro até que ele termine esse acre de grama. Sua prole tem um forte desejo de comer grama por conta própria. Dizer que nossos legumes são a coisa mais saudável do nosso prato começa como um reforço mental para que as crianças comam a coisa no prato que eles menos desejam. O condicionamento torna-se tão forte que muitos não conseguem deixá-lo depois da idade adulta. Isso criou um grande viés na pesquisa nutricional.
Todo mundo quer debater a questão com base em estudos questionáveis e teorias de reações bioquímicas de macronurientes e hormônios humanos, e tudo se torna complicado e soa muito impressionante. A história nos ensinou que, se você quer vender uma idéia falsa, faça parecer realmente complexa. Parece lógico que nossos antepassados não conhecessem a bioquímica. Assim como o bezerro ruminante, eles procuraram o que fosse bom e estava disponível. Nós evoluímos para tirar o máximo proveito dos alimentos que nossos antepassados comiam.
"O dia em que adicionamos 'caçador' ao 'coletor'"
"Olha lá, um daqueles coletores magrelos"
"Hei, humano! Eu te desafio a tentar coletar um pouco do que estamos comendo"
Nossos ancestrais começaram a comer carne, talvez porque notaram que os carnívoros tinham mais tempo livre em suas mãos, enquanto que os herbívoros passavam a vida inteira comendo e defecando. Talvez simplesmente fossem atraídos pelo cheiro e sabor da carne. Talvez os herbívoros apenas os irritassem, então quiseram matá-los e comê-los. De qualquer forma, essa adaptação permitiu que seus cérebros crescessem, seus cólons encurtassem e se tornassem menos dependentes das bactérias intestinais.
Os seres humanos começaram a fazer essa mudança há mais de 1 milhão de anos. Nós abrimos mão da estratégia do herbívoro, de entregar matéria para que suas bactérias escondidinhas fabriquem o tão necessário SCFA a partir da fibra vegetal. Fizemos isso para que pudéssemos ter um cérebro maior e ser adaptáveis a diferentes ambientes. A única desvantagem foi que ficamos comprometidos a receber nossa gordura de fontes externas. E agora que nossos cérebros cresceram o suficiente para ter um intelecto capaz de saltar para conclusões errôneas com base em observações científicas complexas, confusas e contraditórias, nossa saúde enquanto uma espécie deteriorou-se...
Somos a única espécie que tenta viver saudavelmente com uma dieta de baixo teor de gordura. Nossos ancestrais nos ensinaram a comer de forma saudável. Nossos instintos nos dizem o que comer. Sua avó sabia o que comer. Mas nos tornamos muito mais inteligentes do que eles, de maneira que nosso intelecto supera nosso senso de cheiro e gosto, e nós zombamos dos corpos magros e robustos e corações saudáveis dos nossos ancestrais. Nós nos gabamos de quão mais saudáveis são as nossas dietas com baixo teor de gordura do que as "bombas" de alta gordura de nossos avós idiotas – e ignoramos o fato de que nos tornamos obesos mórbidos como resultado da ingestão muito maior de carboidratos. Em outras palavras, "Professando-nos sábios, tornamo-nos tolos".
Rafael Araújo é lifter, praticante de jiujitsu e muay-thai, estudioso do mundo low-carb e criador do Método MCM. O caso de sucesso dele foi contado aqui no Paleodiário um tempo atrás.
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