Farinha pouca, meu pirão primeiro
Essa semana, uma leitora me mandou a manchete da revista Superinteressante, "mostrando que a dieta paleo não tem bases firmes" (juro que estou cansando de ouvir isso):
O estudo relacionado é está aqui (infelizmente, o artigo completo só pode ser visualizado mediante pagamento).
Vejamos o que diz o resumo do artigo, disponível:
Análises de resíduos numa ferramenta de moagem recuperada na Gruta Paglicci, subcamada 23A [32.614 ± 429 BP] (N.T.: o "BP" significa, no final das contas, antes de 1950. Isso quer dizer então que a datação varia entre 30.235 e 31.093 anos atrás), Sul da Itália, demonstraram que humanos modernos pré-históricos coletavam e processavam várias plantas. O uso de grãos ricos em amido (aveia) expande nossa informação sobre as plantas usadas para a produção de farinha na Europa durante o paleolítico e sobre as origens de uma tradição alimentar que persiste até o presente no Mediterrâneo. A distribuição quantitativa dos grãos amiláceos na superfície da pedra de moagem forneceu informação sobre a manipulação da ferramenta, confirmando seu uso como pilão, conforme sugerido pela análise de desgaste por uso. O estado particular de preservação dos grãos de amido sugere o uso de um tratamento térmico antes da moagem, para possivelmetne acelerar a secagem das plantas e tornando o processo seguinte mais fácil e rápido. O estudo claramente indica que o uso de plantas como fonte alimentar era muito importante para populações caçadoras-coletoras, ao ponto de os habitantes originais de Paglicci serem capazes de processar vegetais e já possuírem uma riqueza de conhecimento que tornaria-se amplamente espalhado após o surgimento da agricultura.
Vamos à análise.
A mídia, mais uma vez, apela para a "falácia do espantalho": dieta paleo não propaga que nossos ancestrais alimentavam-se apenas de carnes. Caramba, o quão difícil é entender isso ? Se você parte de uma premissa errada, não tem como o resultado da computação ser correto...
Na atualidade há populações de caçadores-coletores que têm mais de 60% das suas calorias extraídas de vegetais (de novo, os kitavanos). Nem o Dr. Loren Cordain, defensor de uma linha paleo mais estrita, afirma que "paleo é comer só carne".
Além disso, há vários estudos sobre uso de leguminosas por populações ancestrais. A própria Dra. Revedin, uma das autoras do artigo citado, já publicou outras análises de consumo de grãos cereais por populações paleolíticas desde 2010...
Mas tem alguns pontos que a mídia e os detratores da dieta paleo nunca citam:
A agricultura não foi inventada em um dia!
Será que acham mesmo que a agricultura surgiu exatamente no dia 01/01/10.000 AC ? Estava lá a moça (ou o rapaz) sentado na boca da sua caverna, e pensou:
"UAU! Se eu colocar um grão na terra, ele nasce! Pronto, inventei a agricultura!".
Quem conhece um pouco do trabalho do Ray Kurzweil, sabe do que trata da "lei dos retornos acelerados". Resumindo grosseiramente, a lei diz que "quanto mais uma tecnologia avança, mais rápido ela passa a avançar".
Vejamos alguns exemplos clássicos:
- Pensando apenas em telecomunicações, o tempo que levou para que desenvolvêssemos a escrita foi de milhões de anos. Entre a escrita e a produção manual de livros, milhares de anos. Entre a produção manual de livros e a imprensa manual, milhares ou menos. Entre a imprensa manual e a imprensa mecanizada, centenas. Entre a imprensa mecanizada e a internet, pouco mais de 100.
- Andamos a pé por milhões de anos. Andamos com tração animal por milhares (alguns povos). Andamos de locomotiva há menos de 250 anos. Andamos de carro há menos de 200. Andamos de avião há menos de 100. Chegamos à lua há menos de 50.
À medida que a tecnologia de uma área se desenvolve, ela realimenta tecnologias de áreas afins ou mesmo distintas, fazendo com que no geral, as mudanças aconteçam cada vez mais rápido. Quem diria que técnicas usadas por mergulhadores de 150 anos atrás influenciariam as roupas dos astronautas ? Quem diria que a largura de uma carruagem romana iria influenciar a largura de uma estrada de ferro, que por sua vez iria influenciar o tamanho de um foguete espacial ?
Agora voltemos à agricultura. O que será mais provável: que um dia alguém teve uma inspiração divina e inventou todo o processo, descobriu a adubagem, inventou a técnica de enxerto, inventou as ferramentas; ou que foi um processo gradual, ao longo de centenas/milhares de anos, que culminou com a divulgação ampla da técnica por volta de 10.000 AC ?
E veja bem: da mesma maneira que tem pessoas que achem que até hoje o homem não chegou à lua, há povos caçadores-coletores modernos (como os !kung) que até hoje não querem adotar a agricultura.
Perceba, mais uma vez, como a mídia apronta suas manchetes. Compare novamente o resumo do artigo (grifos meus) com a notícia da Superinteressante.
O estudo claramente indica que o uso de plantas como fonte alimentar era muito importante para populações caçadoras-coletoras, ao ponto de os habitantes originais de Paglicci serem capazes de processar vegetais e já possuírem uma riqueza de conhecimento que tornaria-se amplamente espalhado após o surgimento da agricultura.
O artigo trata dos "os habitantes originas de Paglicci". Será que dá para dizer o mesmo dos "habitantes originais do Alasca" ? Dos "habitantes originais da Austrália" ?
E além disso, esse "após o surgimento da agricultura" é capcioso exatamente como comentei antes: a agricultura foi construída aos poucos, e FIRMOU-SE por volta de 10.000 AC. O que o estudo mostra, a meu ver, é o que os habitantes originais de Paglicci estavam muito à frente do seu tempo em termos de tecnologia. Não prova, de maneira alguma, que dieta paleo não tem bases (pré-)históricas ou não funciona...
Genética e disponibilidade
Vamos fazer agora uma especulação absurda: suponha que TODOS os povos paleolíticos dominassem a técnica de torrefação, moagem e preparo, 30.000 anos atrás. Não há indícios de que houvesse humanos nas Américas e nas ilhas do Pacífico nessa época, mas já havia na Austrália. Suponha que havia cereais selvagens disponíveis para todas essas populações (o que não é verdade também).
Que diferença isso teria feito, exatamente ? Nenhuma, por dois motivos.
Primeiro, pela genética. O gênero Homo tem 2.8 milhões de anos. A espécie Homo sapiens sapiens tem 200.000 anos. Se nós consumimos grãos há "apenas" 10.000 anos, isso representa 0.3% do nosso tempo na Terra enquanto hominídeos. Chegar essa data "para trás" 20.000 anos provavelmente não fará muita diferença em termos de alterações genômicas. Continuaríamos descendendo de criaturas que não plantavam e que não estiveram expostas à abundância de cereais e leguminosas por mais de 2.500.000 anos...
... o que nos leva ao segundo ponto, a disponibilidade. Lembre-se, nessa época, 30.000 anos atrás, a agricultura estava engatinhando. Lembre-se da frase do artigo citado: "conhecimento que tornaria-se amplamente espalhado após o surgimento da agricultura".
Sem agricultura, não pode haver oferta abundante nem frequente de grãos. Ainda que todos os homens comessem grãos durante a temporada de grãos selvagens, dificilmente um alimento ofertado em quantidades pequenas durante 1-3 meses ao ano teria impacto sobre a saúde dessas pessoas. E com quantidades pequenas em oferta, nunca seria possível estocar. O que fosse coletado, seria comido na hora.
Pense no trabalho que dá fazer um pão ou mingau a partir de grãos selvagens: você precisa ir para a mata/tundra/savana/longe do bando e correr risco durante horas, enquanto cata grãozinhos e põe numa bolsa. Então volta para a toca, torra, mói, adiciona água e finalmente cozinha. É perfeitamente possível, mas na média não vale o esforço. Simples teoria econômica: o conceito de ROI (sigla para "Return of Investment", ou "Retorno sobre o Investimento") diz que se o seu faturamento é menor que o seu investimento, o negócio não vale a pena. Pela quantidade de calorias ofertadas e o risco corrido, seria mais prático coletar uma raiz, mel, fruta ou mesmo carniça...
Não tenho a menor dúvida de que se um homem primitivo achasse um campo de grãos e soubesse o que fazer com eles, ele processaria e comeria tudo! É óbvio isso: quem está sempre correndo o risco de fome, jamais vai se preocupar com "o impacto da glicemia sobre a saúde". Como diz o velho ditado, "farinha pouca, meu pirão primeiro".
A questão toda é que sem agricultura, ele acharia campos de grãos apenas por acaso e durante curtíssimas temporadas anuais. O mesmo vale para frutas doces e mel. Sem a indústria da apicultura, quem quer mel precisa brigar com abelhas ou com um urso. Sem a fruticultura e suas melhorias constantes, uma maçã e uma manga seriam MUITO menos doces do que são.
Não é à toa que o Jared Diamond chama a agricultura de "o pior engano da história da humanidade". Sem dúvida ela permitiu que desenvolvêssemos cidades, estados, civilizações, escrita, roda, papel, gasolina, eletricidade, carros, aviões e foguetes. Não estaríamos aqui hoje, se não fosse pela agricultura. Mas o custo individual a gente vê acontecer: é com os excessos de carboidratos providos pela agricultura que também desenvolvemos diabetes, obesidade, hipertensão, infartos, e segundo as pesquisas mais recentes apontam, Alzheimer e câncer.
"O que é bom para a espécie, não necessariamente é bom para o indivíduo".
Reflita.
Comentários
Postar um comentário