A Coca-Cola financia cientistas que afastam da dieta ruim a culpa pela obesidade
Artigo traduzido por Hilton Sousa. O original está aqui.
Uma imagem de um vídeo da Fundação Coca-Cola. Em novembro de 2012 a fundação anunciou uma doação de US$3 milhões para a Aliança Conservadora do Parque Garfield (Chicago). A doação visava estabelecer um programa de bem-estar.
Coca-Cola, a maior produtora de bebidas açucaradas do mundo, está financiando uma nova "solução fundamentada na ciência" para a solução da epidemia de obesidade: para manter um peso saudável, exercite-se mais e preocupe-se menos em cortar calorias.
A gigante das bebidas uniu-se com cientistas influentes, que estão propagando essa mensagem em jornais médicos, em conferências e mídias sociais. Para ajudar os cientistas a propagarem a palavra, a Coca providenciou suporte financeiro e logístico para uma nova organização sem fins lucrativos chamada Global Energy Balance Network (Rede Global de Equilíbrio Energético), que promove o argumento de que os americanos, cientes da questão do peso, estão preocupando-se demais com aquilo que comem e bebem enquanto não prestam atenção suficiente ao exercício.
"A maioria do foco das mídias populares e da imprensa científica é 'Oh, eles estão comendo demais, comendo demais, comendo demais' – pondo a culpa no fast food, culpando os refrigerantes e assim vai", disse o vice-presidente do grupo, Steven Blair – um cientista do exercício – em um vídeo recente anunciando a nova organização. "E virtualmente não há evidência convincente de que isso é, na prática, a causa".
Experts de saúde dizem que essa mensagem é enganosa e parte de um esforço da Coca para desviar as críticas a respeito do papel que as bebida adoçadas têm desempenhado no aumento da incidência da obesidade e diabetes tipo 2. Eles argumentam que a companhia está usando o novo grupo para convencer o público de atividade física pode compensar uma dieta ruim apesar da evidência dizer que exercício tem impacto mínimo no peso comparado ao que as pessoas consomem.
Esse conflito sobre a ciência da obesidade vem em um período de esforços crescentes para taxar bebidas adoçadas, removê-las das escolas e impedir as companhias de fazer marketing para crianças. Nas últimas 2 décadas, o consumo de sodas não-diet pelo americano médio caiu 25%.
"As vendas da Coca-Cola estão patinando, e há esse grande sentimento político e público contra os refrigerantes, com cada uma das grandes cidades tentando fazer algo para reduzir o consumo", disse Michele Simon, uma advogada especializada em saúde pública. "Essa é uma resposta direta às perdas da companhia. Eles estão desesperados para estancar o sangramento".
A Coca fez um investimento substancial na nova organização. Em resposta a requisições baseadas na nas leis estaduais de transparência, duas universidades que empregam líders da Global Energy Balance Network revelaram que a Coca doou US$1.5 milhões ano passado para dar início à organização.
Desde 2008, a empresa também financiou perto de US$4 milhões para vários projetos de dois dos membros fundadores da organização: Dr. Blair, professor da Universidade da Carolina do Sul, cuja pesquisa ao longo dos últimos 25 anos formou muito da base das diretrizes federais sobre atividade física, e Gregory Hand, reitor da Escola de Saúde Pública da Universidade West Virgínia.
Os registros mostram que o site da organização, gebn.org, está registrado no quartel general da Coca-Cola em Atlanta, e que a companhia também está listada como administradora do site. O presidente do grupo, James Hill, professor da Escola de Medicina da Universidade do Colorado, disse que a Coca registrou o website porque os membros da GEBN não sabiam como fazê-lo.
"Eles não comandam o show", ele disse. "Nós comandamos o show".
O departamento de relações públicas da Coca-Cola declinou repetidamente solicitações para entrevistas com sua cientista-chefe, Rhona Applebaum, que chamou a atenção para o novo grupo no Twitter. Em uma declaração, a companhia disse que tem uma longa história de suporte à pesquisa científica relacionada às suas bebidas e tópicos como o balanço calórico.
"Nós nos juntamos com alguns dos mais proeminentes experts nos campos da nutrição e atividade física", o pronunciamento disse. "É importante para nós que os pesquisadores com os quais trabalhamos compartilhem suas próprias visões e descobertas científicas, independente do resultado, e sejam transparentes e abertos sobre o nosso financiamento.
O Dr. Blair e outros cientistas afiliados ao grupo disseram que a Coca não tinha controle sobre o trabalho ou a mensagem, e que eles não viam problema no suporte da empresa porque tinham sido transparentes a respeito disso.
Mas até a semana passada, as páginas do grupo no Twitter e Facebook, que promovem a atividade física como solução para doenças crônicas e obesidade ao passo que permanecem em silêncio sobre o papel da comida e nutrição, não faziam qualquer menção ao apoio financeiro da Coca-Cola. Até agora, a campanha de mídia social falhou em vencer a inércia: até a última sexta-feira, o grupo tinha menos de 1000 seguidores no Twitter.
Cena de um video sobre o compromisso da Coca em promover o fitness, em Chicago
O website do grupo também omitiu a menção do financiamento da Coca até que o Dr. Yoni Freedhoff, um expert em obesidade da Universidade de Ottawa, escreveu para a organização questionando sobre financiamento. O Dr. Blair disse que foi um deslize, e que tinha sido corrigido rapidamente.
"Assim que descobrimos que não tínhamos não apenas a Coca-Cola, mas outros financiadores no website, colocamos todos eles lá", disse o Dr. Blair. "Isso nos faz totalmente corruptos em tudo o que fazemos ?"
O envolvimento da Coca na nova organização não é o único exemplo de pesquisa e divulgação patrocinada por corporações a cair sob fogo ultimamente. A Sociedade Americana pela Nutrição e a Academia de Nutrição e Dietética foram criticadas por ativistas da saúde pública por formarem parcerias com empresas como a Kraft Foods, McDonald’s, PepsiCo e Hershey’s. Nutricionistas também encararam críticas por receberem pagamentos da Coca para apresentarem o refrigerante como um lanche saudável.
Críticos dizem que a Coca tem há muito tempo pintado a epidemia da obesidade como um problema primariamente do exercício. "A mensagem é que a obesidade não diz respeito às comidas e bebidas que você consome, é que você não está equilibrando essas comidas com exercício". Disse o Dr. Freedhoff.
Agora, os ativistas da saúde pública dizem, a Coca-Cola está indo um passo além, recrutando cientistas de reputação para fazê-los defender seu caso.
Dr. Hill, o presidente da GEBN, é co-fundador do Registro Nacional de Controle do Peso, um estudo de longo-prazo de pessoas que perderam peso, e serviu em comitês para a Organização Mundial de Saúde e o Instituto Nacional de Saúde. A Sociedade Americana pela Nutrição refere-se a ele como "um lider na luta contra a epidemia global de obesidade".
Barry Popkin, professor de nutrição global na Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill, disse que o suporte da Coca a pesquisadores de saúde proeminentes era um reminiscente das táticas usadas pela indústria do tabaco, que alistava especialistas para tornarem-se "mercadores da dúvida" sobre os danos do tabagismo à saúde.
Marion Nestle, autora do livro "Soda Politics" (N.T.: em tradução livre, "Política do Refrigerante") e professora de nutrição, estudos alimentares e saúde pública na Universidade de Nova York, foi especialmente franca: "A Global Energy Balance Network é nada além de um grupo testa-de-ferro para a Coca-Cola. A agenda da Coca-Cola aqui é muito clara: coloquem esses pesquisadores para confundir a ciência e desviar a atenção da ingestão dietária".
Financiamentos da indústria alimentícia não são incomuns na pesquisa científica. Mas estudos sugerem que os financiados são propensos a descobertas tendenciosas. Uma análise recente dos estudos sobre bebidas, publicada no jornal PLOS Medicine, mostrou que os estudos financiados pela Coca-Cola, PepsiCo, Associação Americana de Bebidas e pela indústria do açúcar tinham probabilidade 5 vezes maior de não acharem qualquer ligação entre bebidas adoçadas e ganho de peso, do que estudos cujos autores não reportaram conflitos de financiamento.
Em seu website, a nova organização sem fins lucrativos promete ser "a voz da ciência" ao discutir sobre estilos de vida saudáveis e afirma que o conceito de balanço calórico provê "um modelo novo, baseado em ciência" para atingir um peso corporal estável.
O grupo diz que há "evidências fortes" de que a chave para evitar o ganho de peso não é reduzir a ingestão de alimentos – como muitos experts em saúde pública recomendam – "e sim manter um estilo de vida ativo e comer mais calorias.” Para suportar essa afirmação, o grupo provê links para dois artigos de pesquisa, cada um dos quais contém essa nota de rodapé: "A publicação desse artigo foi suportada pela Coca-Cola".
Em março, os doutores Hill, Blair e Hand anunciaram a criação da organização em um editorial no Jornal Britânico de Medicina do Esporte. Eles argumentaram que o público e muitos cientistas subestimaram muito a inatividade física como causa da obesidade. Eles disseram que estavam criando a GEBN para aumentar a conscientização "sobre ambos os lados da equação de balanço calórico".
O editorial continha um aviso de que o grupo havia recebido uma "doação educacional irrestrita" da Coca-Cola.
Em resposta a uma requisição feita com base no Ato de Liberdade da Informação, a Universidade da Carolina do Sul revelou que o Dr. Blair tinha recebido mais de US$3.5 milhões em financiamentos da Coca para projetos de pesquisa desde 2008.
A universidade também revelou que a Coca-Cola tinha provido financiamentos significativos para o Dr. Hand, que no ano passado trocou a Carolina do Sul pela West Virgínia. A companhia deu a ele US$806.500,00 para um estudo sobre "fluxo de energia" em 2001, e mais US$507.000,00 ano passado para estabelecer a Global Energy Balance Network.
Não está claro quanto do dinheiro, se qualquer dele, terminou como renda pessoal para os professores.
"Desde que todo mundo divulgue seus potenciais conflitos e os gerencie apropriadamente, é o melhor que se pode fazer", disse o Dr. Hand. "Faz sentido completamente que companhias queiram ter a melhor ciência que possam obter".
Três cientistas que ajudaram a fundar a nova organização sem fins lucrativos financiadas pela Coca. Da esquerda para a direita: Steven Blair, professor do departamento de ciência do exercício, epidemiologia e bioestatística da Universidade da Carolina do Sul; James Hill, professor da Escola de Medicina da Universidade do Colorado; e Gregory Hand, reitor da Escola de Saúde Pública da Universidade West Virgínia.
O presidente do grupo, Dr. Hill, também tem laços financeiros com a Coca-Cola. A companhia fez à Fundação Universidade do Colorado uma "doação monetária irrestrita" de US$1 milhão. Em resposta a uma solicitação baseada no Ato de Transparência do Colorado, a universidade disse que a Coca-Cola cedeu o dinheiro "com o propósito de fundar" a GEBN.
O Dr. Hill disse que buscou dinheiro da Coca para iniciar a organização porque não havia fundos disponíveis em sua universidade. O website do grupo também é suportado por algumas universidade e pelo ShakeWIK Media Group, uma produtora de vídeos sobre saúde. O Dr. Hill disse que ele também recebeu uma promessa de ajuda da General Mills, bem como promessas de suporte de outros negócios, que formalmente não se confirmaram.
Ele disse que acredita que as autoridades de saúde pública poderiam mudar mais facilmente a maneira como as pessoas comem trabalhando junto com a indústria, ao invés de contra ela.
Em seu website, o grupo recomenda combinar mais exercícios e maior ingestão de alimentos porque, disso o Dr. Hill, "'Comer menos' nunca foi uma mensagem efetiva. A mensagem deveria ser 'mexa-se mais e coma de maneira mais inteligente'".
Ele enfatizou que a perda de peso envolvia uma combinação de fatores complexos e que o objetido do seu brupo não era minimizar o papel da dieta ou retratar a obesidade como problema simplesmente do exercício inadequado.
"Se todos dissermos que é tudo questão de atividade física e não sobre comida, então merecemos críticas", ele disse. "Mas eu acho que não fizemos isso".
Mas nos últimos pronunciamentos e no seu website, a tônica do grupo foi diferente.
"A mídia tende a culpar os nossos hábitos alimentares ruins pela epidemia de obesidade", consta em uma publicação recente. "Mas todas aquelas batatas fritas são realmente as culpadas ? O Dr. Steve Blair explica que você não devia acreditar em tudo o que vê na TV".
Dr. Yoni Freedhoff, expert em obesidade da Universida de Ottawa
Nessa publicação, o Dr. Blair sugere que o comportamento sedentário é um fator maior.
A maioria dos experts em saúde pública dizem que o balanço calórico é um conceito importante, porque o ganho de peso para muitas pessoas é uma questão de calorias que entram e calorias que saem. Mas os experts dizem que a pesquisa deixa claro que um lado da equação tem efeito muito maior.
Embora as pessoas possa perder peso de diversas maneiras, muitos estudos sugerem que aqueles que se mantêm magros para sempre consomem menos calorias. Evicência crescente também sugere que manter a perda de peso é mais fácil quando as pessoas limitam sua ingestão de comidas de alto índice glicêmico tais como bebidas adoçadas e outros carboidratos refinados que elevam rapidamente a glicemia.
A atividade física é importante e certamente ajuda, dizem os experts. Mas estudos mostram que o exercício aumenta o apetite, fazendo com que as pessoas consumam mais calorias. O exercício também gasta muito menos calorias do que a maioria das pessoas imagina. Uma lata de 355ml de Coca-Cola, por exemplo, contém 140 calorias e aproximadamente 10 colheres de chá de açúcar. "São necessários 4.8km de caminhada para gastar essa única lata de Coca", disse o Dr. Popkin.
Em um dos mais rigorosos estudos sobre atividade física e perda de peso, publicado no jornal Obesity, cientistar recrutaram 200 adultos com sobrepeso, sedentários, e os colocaram em um programa de exercícios agressivo. Para isolar os efeitos do exercício em seu peso, os sujeitos foram instruídos a não fazer qualquer mudança em suas dietas.
Os participantes foram monitorados para garantir que se exercitassem de 5 a 6 horas por semana, mais que o dobro das 2.5 horas semanais recomendadas pelas diretrizes federais. Depois de 1 ano, os homens tinham perdido uma média de apenas 1.6kg e as mulheres, 1.1kg. Quase todos continuaram sobrepesados ou obesos.
"Adicionar exercício a um programa de dieta ajuda", disse a Dra. Anne McTiernan, autora lider do estudo e pesquisadora do Centro Oncológico Fred Hutchinson em Seattle. "Mas para perda de peso, você vai ter muito mais impacto com mudança de dieta".
Mas bem parecidos com a pesquisa sobre bebidas adoçadas, os estudos sobre atividade física financiados pela indústria do refrigerante tendem a chegara a conclusões que diferem daquelas de estudos feitos por cientistas independentes.
Na última semana, o Centro Pennington de Pesquisa Biomédica na Louisiana anunciou as descobertas de um novo e grande estudo sobre exercício em crianças, que determinou que a falta de atividade física "é o maior preditor de obesidade infantil no mundo"
As informações para a imprensa continuam um aviso: "Essa pesquisa foi financiada pela Coca-Cola".
Kelly D. Brownell, reitora da Escola Sanford de Políticas Públicas, da Universidade Duke, disse que "como negócio, a Coca foca-se em nos empurrar um monte de calorias, e como entidade filantrópica, foca-se na parte de gasto calórico, os exercícios".
Em anos recentes, a Coca doou dinheiro para construir academias de ginástica em mais de 100 escolas pelo país. Ela patrocina um programa chamado "Exercício é remédio” para encorajar médicos a prescrever atividade física a seus pacientes. E quando o Conselho da Cidade de Chicago propôs um imposto sobre o refrigerante em 2012 para ajudar a endereçar o problema da cidade com a obesidade, a Coca-Cola doou US$3 milhões para estabelecer programas de atividade física em mais de 60 centros comunitários da cidade.
A iniciativa de taxar o refrigerante falhou.
"Reverter a tendência da obesidade não vai acontecer da noite para o dia", disse a Coca-Cola em uma propaganda da sua iniciativa de exercício em Chicago. “Mas para milhares de famílias em Chicago, ela começa agora, com a próxima flexão, um simples agachamento ou um polichinelo”.
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