Como escrever uma manchete idiota: o câncer e a falta que a estatística elementar faz às pessoas

Ontem me mandaram uma notícia sobre aquele fisiculturista que morreu de câncer no fígado por ter "comido uma dieta rica em proteínas". 

Fui conferir o texto, e é só mais do mesmo. Afinal de contas, a verdade não vende.

Fico imaginando como deve ser o processo de elaboração de um texto desses. 


  1. Crie uma manchete espalhafatosa
  2. Escreva qualquer coisa no recheio, sem verificar se o texto está condizente com a manchete
  3. Não verifique as fontes
  4. Publique

No caso, a manchete foi: 
Frango, ovo e batata doce: fisiculturista morre de câncer no fígado após dieta cheia de proteína

Mas o próprio texto diz:

Em busca do corpo perfeito, o inglês apostou em uma dieta de 10 mil calorias ao dia, incluindo no cardápio hambúrgueres, pizzas, bacon e as mais variadas bebidas energéticas

E relevaram o fato de que o falecido, o inglês Dean Wharmby, já tinha admitido ter usado esteróides "no início da carreira" (ahã, Cláudia, senta lá) e que culpava a comida-lixo pelo câncer – e não o ovo, frango e batata-doce. A manchete do Daily Mail é BEM diferente:

Trágedia: ex-fisiculturista, 39 anos, perde a batalha contra o câncer de fígado que atribuia à dieta de 10.000 calorias por dia em pizzas e energéticos

Minhas condolências à família do Dean – câncer, quer algo/alguém tenha culpa ou não, é sempre uma dor sem medida. Mas saindo desse argumento puro e simples: e SE o ovo, batata-doce e frango REALMENTE tivessem causado o câncer ? O que isso provaria ? Estatisticamente, nada.

Da mesma maneira que o Steve Jobs, vegetariano, ter morrido de câncer, também não prova nada.

Da mesma maneira que o Frank Medrano, vegano, ser um dos caras mais "cortados" que tem pela internet hoje, também não prova nada.

Medrano, trincado à base de broto de feijão e folhas cruas

Da mesma maneira que o Rich Fronning, praticante de paleo e CrossFit, ser um dos caras melhor-condicionados do planeta, também não prova nada.

Da mesma maneira que o Rich Roll, vegano, ser um dos melhores ultramaratonistas do mundo, também não prova nada.

Da mesma maneira que aquele seu tio cachaceiro nunca ter tido cirrose, também não prova nada. 

Da mesma maneira que aquele seu colega que come o próprio peso em açúcar a cada semana e permanece magro e saudável, também não prova nada.

O que muitas e muitas vezes passa batido é o tamanho da amostra – principalmente para quem não está habituado à estatística. Um auto-experimento vale muito ("o ovo faz bem para todo mundo, mas para mim faz mal"), mas confiar em dados estatísticos de auto-experimentos de outras pessoas é dar um baita tiro no pé.

Como dizia o Raul Seixas, "o que eu como a prato pleno pode ser o seu veneno".


Krig Rá Bandolo!


O que funciona para o Medrano, Fronning, Roll, para o tio cachaceiro e para o amigo-formiga pode não funcionar para mim. Como sair do impasse então ? A resposta é simples: confiar em dados estatísticos grandes, ENORMES.

Fronning. O que ele faz brincando, 
você não faz nem zangado


Para isso é que servem aqueles estudos prospectivos randomizados e aquelas meta-análises que nós praticantes de paleo gostamos de citar. O poder está nos números, e mesmo que não seja verdade absoluta ("dieta paleo não funciona para mim, me deixou doente"; "veganismo me deixou mais saudável"; "vegetarianismo me fez perder massa muscular"), o fato de abarcar a média ou a maioria já dá uma grande segurança.

"Na média, quem pula do 7o andar sem rede de proteção, morre"
"Ah, mas o meu primo pulou e não morreu"
"E você, vai pular também?"

Toda regra tem exceções, mas ela não se chama "regra" à toa...

Os mecanismos de surgimento e atuação do câncer ainda estão longe de serem completamente compreendidos. Alguns cânceres surgem "sem motivo", alguns regridem da mesma maneira (e aí muitos atribuem à fé, na falta de explicação melhor).

Aquele seu tio, na festa de família

Na palestra que o Dr. Souto ministrou aqui em BH em 2014, gostei muito de uma analogia feita por ele: ao nascermos, todos temos 1 bilhete da "loteria do câncer". Podemos ter a vida mais pristina e regrada, comendo apenas comida de verdade, e ainda assim ter câncer. Mas se comemos lixo, se fumamos, se bebemos álcool, se somos sedentários, se abusamos de fármacos, "compramos" mais bilhetes ao longo da vida.

Qualquer um pode ser premiado, mas uns têm mais chances que os outros :-(

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