As diretrizes dietárias americanas de 2015 - O fim do limite na gordura dietária total

Enquanto traduzia o artigo abaixo, mandei para um amigo um email com o título "Adeus, guerra à
gordura" – no qual citava além desse texto, alguns outros que mostram como a visão nutricional tem mudado nos últimos meses/anos. Ele fez o papel de cético (que é uma das grandes coisas que admiro em sua personalidade), e apontou que o meu email dava a entender que já há um consenso e que a guerra às gorduras acabou.

Compreendi, e concordei. Não acabou, e não vai acabar tão cedo. Muitas vezes, por acreditar nas evidências recentes que suportam as dietas LCHF, eu me empolgo e perco a objetividade – que nunca deveria ser perdida, quando se trata de ciência. Não é porque eu concordo e aprecio, que necessariamente é verdade – foi exatamente esse o erro que nos jogou no caos nutricional no qual nos encontramos hoje.

O próprio texto traz bem explícito um alerta: de que o expressado nele é uma opinião, e não necessariamente reflete a posição do órgão publicador (no caso, a JAMA – Revista da Associação Médica de Medicina). No entanto, o simples fato de uma opinião destas ter sido publicada, em consonância com as novas diretrizes dietárias americanas que não falam mais em limitar as gorduras dietárias, já é um enorme passo à frente. Por exemplo, apesar de o texto das diretrizes afirmar categoricamente  que "reduzir as gorduras saturadas não reduz o risco cardíaco", também afirma que "trocar as gorduras saturadas por gorduras vegetais insaturadas, reduz o risco". Quais gorduras vegetais insaturadas ? Azeite de oliva ? Óleo de abacate ? Canola ? Girassol ? Soja ? Ainda tem pano para muitas mangas aí.

Dito tudo isso, não é o fim da guerra. Mas é uma batalha vencida. Uma batalha importante.



Artigo traduzido por Hilton Sousa. O original está aqui.


por Dariush Mozzafarian e David Ludwig

A cada 5 anos, o USDA (Deparamento Americano de Agricultura) e o DHHS (Departamento de Saúde e Serviços Humanos) conjutamente publicam as Diretrizes Dietárias para os Americanos. Estas diretrizes tem grande influência sobre o fornecimento de alimentos, incluindo escolas, lanchonetes governamentais, forças armadas, programas de assistência social, produção agrícola, receitas de restaurantes e formulações alimentares da indústria. Uma revisão acurada das Diretrizes Dietárias é crucial à saúde de milhões de pessoas. Um dos componentes principais desse processo é o relatório do Comitê Conselheiro das Diretrizes Dietárias (DGAC, na sigla em inglês) – que acaba de ser publicado [1]. Ele é preparado por cientistas apontados que sistematicament erevisão a literatura e proveem recomendações baseadas em evidências às secretarias do USDA e do DHHS.

Nos meses por vir, as secretarias vão revisar as recomendações do DGAC, considerar comentários do público, acadêmicos, grupos ativistas e a indústria, e finalizarão as Diretrizes.

No novo relatório do DGAC, uma revisão amplamente noticiada foi a eliminação do colesterol como "nutriente preocupante". Isso surpreendeu o público, mas está de acordo com as evidências científicas mais recente que não relatam relação apreciavel entre colesterol dietário e colesterol sérico, ou eventos cardiovasculares clínicos na população em geral [2].

Uma mudança menos alardeada, mas mais importante, foi a ausência de um limite superior ao consumo total de gordura. O relatório do DGAC não listou gorduras totais como nutriente preocupante, nem propôs restringir seu consumo. Ao invés, concluiu: "Reduzir a gordura total (substituindo gorduras em geral por carboidrados) não reduz o risco de doença cardiovascular... O aconselhamento dietário deveria enfatizar a otimização dos tipos de gorduras dietárias e não reduzir o total de gorduras". Limitar o total de gorduras não foi recomendado para prevenção da obesidade; ao invés, o foco foi colocado em padrões baseados em alimento saudáveis que incluem mais vegetais, frutas, grãos integrais, frutos do mar, leguminosas e laticínios e incluem menos carne, comidas e bebeidas adoçadas, e grãos refinados.

Com essa afirmação discreta, o relatório do DGAC reverteu quase 4 décadas de política nutricional que colocava a prioridade na redução do consumo total de gorduras para a população. Em 1980, as Diretrizes Dietárias recomendaram limitar as gorduras dietárias a menos de 30% das calorias. Esta recomendação foi revisada em em 2005, para incluir uma faixa de 20 a 35% das calorias. A razão primária para limitar a gordura total foi a redução da gordura saturada e o colesterol dietário, que se acreditava aumentarem o risco cardiovascular ao elevar as concentrações sanguíneas de LDL. Mas a campanha contra a gordura saturada rapidamente foi generalizada para incluir todas as gorduras dietárias. Como a gordura contém cerca do dobro de calorias por grama do carboidrato ou proteína, também argumentou-se que dietas pobres em gordura iriam ajudar a evitar a obesidade – uma preocupação pública crescente.

Os efeitos complexos da gordura saturada sobre os lipídios e lipoproteínas agora são reconhecidos, incluindo evidência dos efeitos benéficos dela sobre HDL e os triglicérides, e os efeitos mínimos sobre a apolipoproteína-B, quando comparada aos carboidratos [3]. Estas complexidades explicam o motivo da substituição da gordura saturada por carboidratos não reduzir o risco cardiovascular [1, 2]. Além disso, um limite global nas gorduras totais inevitavelmente reduz a ingestão de gorduras insaturadas, entre as quais as castanhas, óleos vegetais e peixes são particularmente saudáveis [1, 2].

Mais importante, o foco da política na redução das gorduras não levou em consideração os danos dos carboidratos altamente processados (por exemplo: grãos refinados, subprodutos de batata e açúcar adicionado) – cujo consumo está inversamente ligado ao da gordura dietária.

Assim como com outros campos científicos, da física à clínica médica, a ciência nutricional tem avançado substancialmente em décadas recentes. Estudos randomizados confirmam que dietas mais ricas em gorduras saudáveis, substituindo os carboidratos ou as proteínas e ultrapassando o limite atual de 35% de gorduras, reduzem o risco de doença cardiovascular [4]. 

O relatório 2014 do DGAC tacitamente reconhece a falta de evidência para recomendar dietas pobres em gorduras e ricas em carboidratos para o público em geral, como prevenção ou tratamento de qualquer grande doença, incluindo doença cardíaca, derrame, câncer, diabetes ou obesidade [1, 2]. Esse grande avanço permite que política nutriciional seja refocada na direção dos grandes responsáveis dietários pelas doenças crônicas.

Por décadas, os carboidratos foram considerados a fundação das dietas saudáveis, conforme evidenciado pela colocação de produtos feitos de grãos (incluindo muitos itens altamente processados) na base da Pirâmide Alimentar de 1992. Entretanto, em 2005 as Diretrizes Dietárias alertaram sobre a restrição dos grãos refinados e açúcar adicionado devido à evidência crescente de que carboidratos refinados aumentam a disfunção metabólica, obesidade e doença cardiovascular. Atualmente o consumo americano de bebidas adoçadas está em declínio, provavelmente relacionado tanto à pesquisa científica quanto à publicidade associada que confirma seus efeitos adversos. Ainda assim, o açúcar adicionado em outras comidas, e talvez mais importante, os produtos de grãos refinados – incluindo pão branco, arroz branco, chips, biscoitos, cereais e sobremesas assadas – continuam a representar grandes fontes de calorias no suprimento de comida americano.

O relatório do DGAC enfatiza que mais de 70% da população americana consome produtos de grãos refinados além da conta. Muitas dessas comidas tem uma "aura" de ser saudável, ou ao menos uma reputação benigna – baseada em anos de diretrizes governamentais e promoção da indústria. Reconhecendo esse engano difundido, o relatório 2015 especifica que "o consumo de produtos com 'gordura reduzida' ou 'sem gordura', com grandes quantidades de grãos refinados e açúcares adicionados, deveria ser desencorajado". A eliminação do limite superior do total de gorduras tornaria mais fácil para as indústrias, restaurantes e o público aumentarem as gorduras e proteínas saudáveis, enquanto reduziria os grãos refinados e o açúcar adicionado.

Ao finalizar as Diretrizes 2015, o USDA e o DHHS deveriam seguir o relatório baseado em evidências e cientificamente sólido do DGAC, e remover o limite existente no consumo total de gorduras. Ainda assim, isso representa apenas uma ação que pode influenciar as dietas das pessoas; outras políticas deveriam se seguir . Por exemplo, os painéis de informações nutricionais (dos rótulos), regulado separadamente pelo FDA (N.T.: ógão americano que regulamenta alimentos e medicamentos), lista os valores percentuais para diversos nutrientes-chave em alimentos embalados. Notavelmente, os painéis ainda usam o antigo limite de 30% para as gorduras, que já se encontra obsoleto há mais de 1 década [6]. O painel agora devia ser revisado para eliminar as gorduras totais, bem como o colesterol dietário, da lista de nutrientes, e ao invés adicionar os grãos refinados e açúcar adicionados. Incluindo apenas o açúcar adicionado, uma mudança atualmente em consideração, iria alertar insuficientemente sobre os riscos – e implicitamente encorajar a ingestão – do grãos refinados. Similarmente, o USDA deveria modernizar os padrões de Smart Snacks [7], removendo a restrição de 35% de gorduras totais dos critérios. O Instituto de Medicina deveria atualizar seu relatório, já com 15 anos de idade, sobre as referências dietárias para energia e macronutrientes [6].

A restrição atual sobre a gordura total tem implicações para virtualmente todos os aspectos da dieta americana, incluindo aquisições governamentais para gabinetes e para as forças armadas, refeições para idosos e diretrizes para programas assistenciais – que combinados fornecem 1 em cada 4 refeições servidas nos EUA. O foco no total de gorduras também afeta outras políticas e diretrizes. Por exemplo, O Programa Nacional de Merenda Escolar recentemente baniu o leite integral, mas permite leite desnatado adoçado. As diretrizes atuais dos Institutos Nacionais de Saúde sobre dietas saudáveis para famílias e crianças recomendam "comer quase sempre" molho de salada sem gordura, carne de boi ou porco com a gordura aparente removida e carne moída extra-magra. E ainda recomenda ser cuidadoso ao comer vegetais preparados com gordura, castanhas, manteiga de amendoim, atum enatado em óleo, óleos vegetais e azeite de oliva. Além disso, recomenda minimizar o leite integral e os "ovos preparados com gordura", estando ambos listados como na categoria "de vez em quando" junto com os doces, chips e refrigerante normal [8]. Seguindo essa mesma linha, o FDA recentemente publicou uma carta de alerta a um fabricante de "barrinhas" minimamente processadas, afirmando que os produtos não poderiam ser vendidos como "saudáveis" em parte por causa dos limites à gordura total e saturada, ainda que as gorduras nessas barras fossem derivadas predominantemente de castanhas e outras fontes vegetais. A restrição sobre a gordura também direciona a formulação e marketing das indústrias, conforme evidenciado pela propaganda pesada de sobremesas, lanches, molhos de salada, carnes processadas e outros produtos de valor nutricional questionável, reduzidas em gordura. Baseado em anos de mensagens inacuradas sobre a gordura total, uma pesquisa do Gallup de 2014 mostrou que a maioria dos cidadãos americanos ainda estão ativamente tentando evitar a gordura dietária, enquanto comem carboidratos refinados demais.

O limite ao total de gorduras representa um obstáculo a mudanças consideráveis, promovendo comidas danosas pobres em gordura, minando as tentativas de limitar a ingestão de amido refinado e açúcar adicionado, e desencorajando os restaurantes e indústrias alimentícias de prover produtos mais ricos em gorduras saudáveis. É hora de o USDA e o DHHS desenvolverem o apoio adequado, mensagens de saúde pública e outros esforços educacionais para ajudar as pessoas a compreenderem que limitar o total de gorduras não produz quaisquer benefícios mensuráveis à saúde, e de que aumentar as gorduras saudáveis, incluindo mais de 35% das calorias, tem benefícios de saúde documentados. Baseado na força das novas evidências científicas acumuladas e consistente com o novo relatário do DGAC, uma reestruturação da política nacional de nutrição tem apoio para afastar-se da redução das gorduras totais e rumo a escolhas saudáveis de alimentos, incluindo aqueles ricos em gorduras saudáveis.

Referências


  1. Dietary Guidelines Advisory Committee; Scientific Report of the 2015 Dietary Guidelines Advisory Committee. 2015; http://www.health.gov/dietaryguidelines/2015-scientific-report/. Accessed March 25, 2015.
  2. Mozaffarian D. Nutrition and cardiovascular disease and metabolic diseases. In: Mann DL, Zipes DP, Libby P, Bonow RO, eds. Braunwald’s Heart Disease: A Textbook of Cardiovascular Medicine. 10th ed. Philadelphia, PA: Elsevier/Saunders; 2014.
  3. Mensink RP, Zock PL, Kester AD, Katan MB. Effects of dietary fatty acids and carbohydrates on the ratio of serum total to HDL cholesterol and on serum lipids and apolipoproteins: a meta-analysis of 60 controlled trials. Am J Clin Nutr. 2003;77(5): 1146-1155.
  4. Appel LJ, Sacks FM, Carey VJ, et al; OmniHeart Collaborative Research Group. Effects of protein, monounsaturated fat, and carbohydrate intake on blood pressure and serum lipids: results of the OmniHeart randomized trial.JAMA. 2005;294(19): 2455-2464.
  5. Estruch R, Ros E, Salas-Salvadó J, et al; PREDIMED Study Investigators. Primary prevention of cardiovascular disease with a Mediterranean diet. N Engl J Med. 2013;368(14):1279-1290.
  6. Institute of Medicine. Dietary Reference Intakes for Energy, Carbohydrate, Fiber, Fat, Fatty Acids, Cholesterol, Protein, and Amino Acids (Macronutrients). Washington, DC: National Academies Press; 2002.
  7. US Department of Agriculture. Smart Snacks in School: USDA’s “All Foods Sold in Schools” Standards. 2015; http://www.fns.usda.gov/sites/default/files/allfoods_flyer.pdf. Accessed March 29, 2015.
  8. We can: ways to enhance children’s activity & nutrition [flier]. National Institutes of Health. http://www.nhlbi.nih.gov/health/educational/wecan/downloads/go-slow-whoa.pdf. Accessed June 3, 2016.

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